Luta hoje é mais ampla, e para ela estamos mais despreparados
“Despontou a ponta do arco-íris, porque se passasse por baixo, isso mesmo que Macobeba queria. Então chegou na gruta da velha e fez uma limpeza de dia de sábado, matou lacrau e lacraia, aranha caranguejeira de barriga alazã, maribondo e formiga tinhanheira. Ficou cansado, correu o dedão na testa e varejou longe o suor. Mitavaí tinha perdido tempo, e Macobeba andava de rio acima levantando falso, fazendo enredo, espalhando mentira dele. Dizendo que Mitavaí andava faltando a vergonha a mulher casada e moça donzela, que ia acabar com o respeito de filho para pai, que mulher ia ser vendida” (Manuel Cavalcanti Proença, Manuscrito Holandês ou A Peleja do Caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba, 1959).
“Exércitos em todo o mundo são constantemente questionados acerca de sua necessidade, principalmente em virtude do gasto requerido para sua manutenção. A necessidade de justificar a existência dessas instituições é saudável porque é também um exercício de pensamento sobre o que significa soberania para uma nação.” (Vinicius Mariano de Carvalho, Prefácio “Como se constitui e para que serve um Exército?”, a Fernando da Silva Rodrigues e Tássio Franchi, organizadores, Exército Brasileiro Perspectivas Interdisciplinares, Mauad X, RJ, 2022).
Quem defende a soberania de qualquer país? Sempre tivemos dificuldade para responder a esta questão: o que significa soberania no Brasil? Nacionalismo é soberania? A tal ponto que, nesta terceira década do século 21, com mais de 500 anos de história, os apoiadores de um dos mais entreguistas governos que já tivemos se enrolam na bandeira brasileira para defendê-lo e para atacar seus opositores. Seria irônico, se não fosse trágico.
Muito já se escreveu e ainda será escrito sobre a formação social e a cultura brasileiras. Há um fato inquestionável: tivemos 400 anos de escravidão legal e mais 100 anos de escravidão real, efetiva.
As escassas e reais ações para eliminar a escravidão no Brasil foram torpedeadas de todos os modos, sendo atualmente colocá-la fora do campo econômico, junto com o reconhecimento social de sexo e etnias, os identitarismos.
Também sofremos no Brasil da presença constante, desde as capitanias hereditárias até os golpistas de 2016, da ideologia liberal/neoliberal. Mesmo sendo reinterpretada para momentos específicos.
O único pensamento libertador que teve na política brasileira, com raízes nacionais, foi o trabalhismo, que, para sua continuidade, o maior estadista brasileiro – Getúlio Dornelles Vargas – criou o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O PTB foi destruído pelo maquiavelismo político de um militar entreguista, corrupto, que participou do golpe de 1964, Golbery do Couto e Silva.
Recordando aquele momento, de imensa confusão, que engloba o mote da redemocratização. O grande líder do trabalhismo brasileiro, Leonel de Moura Brizola, voltava para empreender a nova jornada política do nacional trabalhismo. A bandeira do PTB ainda ecoava na população, assim como as realizações de Getúlio Vargas. Brizola era indiscutivelmente a continuidade deste movimento. Tirar-lhe aquele símbolo político era importante para todas as correntes que disputavam o governo em 1980.
Brizola foi uma unanimidade: os golpistas de 1964, os liberais democratas, os socialistas, os comunistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), até os sindicalistas criados no modelo estadunidense (PT), todos se uniram para derrotar Brizola em 1989. E a mão de Golbery foi importantíssima. O trabalhismo, a mais nacional criação política do Brasil, morreu ali, na redemocratização, na Nova República.
Nelson Werneck Sodré (Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro, ISEB, RJ, 1960) escreve: “É o imperativo de superar a contradição entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora que adota o Nacionalismo como expressão oportuna de uma política. É a compreensão de que só passando a segundo plano, sem negá-la ou obscurecê-la, a contradição entre a classe que fornece o trabalho, e que ganha em consciência cada dia que passa, e a classe que necessita realizar-se pela capitalização com recursos nacionais e seu adequado aproveitamento, poderemos subsistir como nação que apresenta o Nacionalismo como solução natural e lhe dá essa força, essa penetração e esse poder catalisador que a simples observação registra”.
É o mesmo pensamento que vê como fascismo, como de extrema direita, nos movimentos nacionalistas europeus contra a moeda única, o euro (quando a moeda é um grande símbolo e instrumento de soberania), contra o pensamento colonizador do neoliberalismo, contra a aliança atlântica, que coloca tropas estadunidenses no continente europeu.
Não encontrando eco na população para suas teses concentradoras de renda, os liberais afastam a questão nacional e usam a questão ética: a corrupção. Vê-se o “mar de lama”, o “mensalão” e a “lava-jato”, as saídas do mesmo projeto dominador, senão dos mesmos escritórios; vê-se a campanha contra o industrialismo mitigado de Juscelino Kubitschek, em acusações sobre os enriquecimentos na construção de Brasília, na até ridícula acusação de corrupto a João Goulart, Brizola, Darcy Ribeiro, apagando as inúmeras negociatas que favorecem bancos e empresas estrangeiras (os bilhões de perdão tributário antecipado para petroleiras estrangeiras).
O gênio Darcy Ribeiro, em 1971, alertava em O dilema da América Latina – Estruturas de Poder e Forças Insurgentes, dos seus monumentais Estudos de Antropologia da Civilização: “O mais grave é que esta dominação (colonial) já não se exerce de fora, mas principalmente desde o interior de nossas sociedades onde as corporações norte-americanas se instalaram como quistos que crescem à custa de nossa substância; onde seus serviços de controle dos meios de comunicação de massa conformam a opinião pública de acordo com seus interesses; onde seus órgãos de assistência militar formam e orientam a oficialidade das forças armadas como órgãos auxiliares locais de seu esquema de dominação; onde múltiplas agências intervêm em todos os centros de decisão dos governos, nas associações patronais e nos sindicatos operários, nas comunidades religiosas, em todas as esferas da educação e nas instituições científicas”.
E estas “elites dirigentes invisíveis”, atuando “conjuntamente com as elites de poder nativas, compõem um sistema unificado de dominação que tem como projeto de defesa de seus interesses induzir as nações latino-americanas a aceitar formas de integração e de controle que as converterão em uma espécie de consulados de um novo império”.
No artigo anterior desta série de Reflexões – “Questão Nacional após 1822” – vimos as dificuldades de nossa academia em estruturar as classes e conjugar as diferenças regionais com a unidade nacional.
Seguiremos o mestre Darcy Ribeiro. O estamento formador do patronato (quer oligárquico, rural, parasitário financista; quer o que seria moderno, o empresariado nacional em processo de extinção) e do patriciado (judicial, militar, político, tecnocrático, religioso) é estrangeiro, encontra-se fora do alcance das leis e do povo. Este conjunto Darcy denomina “classes dominantes”.
Seguem-se, hierarquicamente dispostos os “setores intermediários” (profissionais, pequenos empresários, funcionários públicos); as “classes subalternas” (camponeses, operários, minifundiários e serviçais empregados de pessoas jurídicas); e, fechando a estratificação social, as “classes oprimidas” (empregados domésticos, biscateiros, peões, diaristas, e mendigos, prostitutas, delinquentes).
A simplificação econômica das classes sociais deixa muito a desejar quando se examina a questão nacional. A estrutura do poder é mais significativa.
Em O Povo Brasileiro A formação e o Sentido do Brasil, 1995, Darcy Ribeiro esclarece que “em 1570, a dominação portuguesa estava assentada, solidamente, em oito implantações, com cerca de 4 mil vizinhos (8 a 12 pessoas cada) que correspondiam a uma população de 30 a 40 mil habitantes. E aqueles eram na maioria mamelucos, porque todos os portugueses que se encontravam no Brasil não somam uma quarta parte”. As quatro mais importantes implantações se encontravam na Bahia, em Pernambuco, no Espírito Santo e em São Paulo. As restantes decaíam principalmente por ação dos indígenas.
Também a centralização na luta de classes impede a observação de características nacionais como a miscigenação e a capacidade de harmonizar interesses, como na citação de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro.
Leia-se, do sociólogo paulista Florestan Fernandes (Mudanças sociais no Brasil, 1960): “No Brasil, até hoje, fora da iniciativa privada ainda se desconhece a primeira exceção que marcará o início de uma nova orientação político-administrativa no seio do Governo e da administração”.
Esquece o professor da Universidade de São Paulo (USP) da experiência marcante do positivismo gaúcho e de sua continuidade na Revolução de 1930, a mais importante e mais profunda mudança na estrutura organizacional e na administração brasileira, desde 1500 até, ao menos, a data de seu trabalho. E mais, tão fortemente nacional foi esta tradução, ou apropriação do pensamento de Augusto Comte, que vem sendo desde a Revolução combatida pelo pensamento hegemônico do liberalismo em nosso País.
A situação vivida pelos brasileiros após o golpe de 2016 é mais grave. Pois, desta vez, não é aplicado por um império, que poderia, em princípio, fazer ressurgir o espírito nacional, mas por sistema econômico, o financismo, que, conquistando Estados Nacionais, faz deles seus braços, pernas e voz para impor sua dominação.
A luta do nacionalismo hoje é mais profunda e mais ampla, e para ela estamos mais despreparados do que no século passado. O domínio de todas as mídias, a criação de uma religião – a neopentecostal – para disputar a conquista de “almas” da católica e das tradicionais protestantes (luterana e batista), o suborno, por diversos meios, de instituições, inclusive a academia e as educacionais, colocando o nacionalismo fora da agenda política, ocupada por questões ditas globais – ecológicas, ambientais, sexuais – e identitárias – negros e índios – exigem esforço extraordinário para o convencimento da agenda nacional como resposta aos problemas brasileiros.
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.