Reflexões para Teoria do Estado Nacional – questões globais?

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Gráficos do mercado
Gráficos do mercado (foto Pixabay)

Agenda totalitária pós-liberal em que grandes corporações exercem o poder

 

“Estranhamos quando começamos a ouvir batuque e algazarra na várzea à noite. Mas entre estranhar e apurar vai grande distância, não temos tempo nem disposição para ficar fiscalizando tudo o que se passa no território, e nos contentamos com dizer a nós mesmos e às pessoas mais preocupadas que o barulho só podia ser causado por um quilombo de Aruguas fugitivos ou por ensaios para a festa do lançamento da abóbora. Lançar abóbora em terreno alagado não dá certo, a abóbora precisa bater em superfície dura para se espatifar e espirrar miolo e sementes para todo lado” (José J. Veiga, “O estranho povo da várzea”, em Os Pecados da Tribo, 1976)

 

Desde a fragorosa derrota das finanças, na segunda década do século 20, pelo resultado da I Grande Guerra e pelo surgimento do primeiro país comunista na Europa, o financismo iniciou sua luta para reconquista do poder que desfrutara, no mundo ocidental, desde os séculos 14/15 até aquelas transformações.

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O primeiro expressivo aliado que as finanças encontraram foi o ecologismo, movimento das questões ambientais. E, a partir daí, universalizou diversas questões, cujas particularidades nacionais sempre atropelavam, para infligir danos aos seus dois inimigos: o industrialismo e o comunismo. Estes que se uniam, sem qualquer aliança ou interesse comum, mas competitivamente, na questão da produção em massa.

Com o tempo diversas questões de ordem racial, sexual, de naturalidades, até mesmo de idiomas e suas formas de expressão, foram sendo insufladas, exponenciadas, para que passassem a constituir problemas em Estados Nacionais. Estes se tornavam assim cativos dos interesses das finanças, estas cada vez mais apátridas, dando sentido a falsas questões, a errôneos dilemas, quando a verdadeira questão nacional era a ausência de cidadania e da participação do povo nas decisões.

Não é correto negar as questões, os problemas que surgem sistematicamente para as parcelas mais fracas ou de menor número dentro de qualquer comunidade. No entanto, sobre estas questões, existe uma estrutura que as abriga, seja de ordem religiosa, política, mais estreitamente ideológica, ou mesmo material, devido à ausência do Estado.

Cumprindo seus deveres básicos de proteção – segurança e defesa dos direitos – e construção permanente da cidadania – ensino, saúde, moradia e mobilidade – o Estado Nacional cercearia a ação deletéria, nociva do poder financeiro, o qual, por seu lado, buscar evitar a eficácia da ação estatal.

Analisemos mais detalhadamente algumas destas supostas questões universais, globais. Primeiro deveria haver conceito e identificação do povo. Mas o que é povo? Um conjunto diversificado de seres humanos? O conjunto de classes ou de grupos sociais? O povo tem um objetivo comum? Povo são escravos e senhores?

Como separar o povo? Teriam estes grupos alguma identidade e objetivos comuns? Vê-se, no universo de pessoas existentes no mundo, que os identitarismos não subsistem a qualquer aprofundamento, eles servem tão somente de plataforma política para dificultar ou impedir o caminho da cidadania. E por quê? Porque a cidadania se identifica com a nação, o cidadão romano tinha um espaço imenso para arguir sua cidadania, pois todo ele era o Estado Romano, submetido ao direito romano.

Quem mais se aproximou ao status romano foi o cidadão inglês. No entanto, este cidadão não era um par. Internamente, na metrópole colonial, ele estava rigidamente separado em classes, e transportava estas secções, estas diferenças, para onde ia este modelo colonial.

Vamos tratar mais da questão ambiental, da questão ecológica, pois esta, sim, afeta mais amplamente as nações.

Sem que haja qualquer demérito para as lutas por igualdade e poder das mulheres, dos negros, índios, homossexuais, estes são usados pelo neoliberalismo financista para desfocar, desviar a atenção das questões decorrentes do poder financeiro: a corrupção, a falta de garantia dos direitos, o desemprego, os salários e vantagens do trabalho cada vez menores, sendo extintos com as construídas crises financeiras etc.

Paul Singer (1932–2018), economista que, nascido na Áustria, foi professor (Universidade de São Paulo) e militante político no Brasil, em um de seus últimos trabalhos, Uma Utopia Militante (Editora Vozes, Petrópolis, 1998), assim interpretou a sociedade brasileira, ao fim do século 20: “Tanto a revolução keynesiana, que trouxe a revolução do dirigismo a partir de 1930, como a contrarrevolução monetarista, que ensejou a contrarrevolução neoliberal, a partir dos 1980, são mudanças sistêmicas na superestrutura. Modificações superestruturais como essas não se generalizam, porque esbarram com resistências maiores ou menores em diferentes países. Apesar da grande ofensiva neoliberal em curso, em lugar algum o governo abandonou a responsabilidade de regular a oferta de moeda e a taxa cambial.”

Respeitando o autor, afirmaríamos que, excepcionando o caso do presidente Jair Bolsonaro, inteiramente ignorante das suas responsabilidades institucionais e incapaz de conduzir sua função, agindo, deste modo, de forma muitas vezes inapropriada ao Estado Nacional, o governo, representando o poder vigente, não se inclinará a aceitar qualquer subordinação a poderes não emanados do interesse nacional e da vontade popular. Porém, o sistema financeiro internacional ou, melhor qualificando-o, apátrida, procurará corromper as instituições nacionais para impor suas determinações.

E efetivamente é o que vemos no Brasil com a autonomia efetiva do Banco Central, com as decisões dos tribunais superiores, com propostas legislativas (Lei 14.185/2021, remuneração sobre sobras de caixa) e a inércia fiscalizadora. Em favor do autor de O que é a economia e tantas importantes obras de nossa literatura socioeconômica, observamos que a situação de domínio do poder financeiro se aguça neste século, no Brasil, e ameaça a própria paz entre as nações.

Analisemos, então, a falsa questão ecológica. Quem conheceu a Inglaterra do século 19, das minas de carvão, do início da industrialização, verificou o que pode ocorrer com a intensa produção fumaça composta de ácido sulfúrico, dióxido de enxofre, cinzas, fuligem, entre outros compostos. Até o rio Tâmisa, que banha a capital, era infecto e poluído, como os romances ingleses o descreviam.

O primeiro elemento foi a mudança do insumo energético. O petróleo contém menos partes poluidoras do que o carvão mineral. Depois as tecnologias de uso das energias e de conservação ambiental desenvolveram filtros e outros produtos que reduziu imensamente a poluição atmosférica.

Mas há um dado nesta equação que é ocultado pelos seus arautos. Não é possível, sem sérios danos ao bem-estar dos povos, reduzir a taxa de consumo de energia per capita; ao contrário, a melhoria de vida da maioria absoluta da população terrestre está associada ao crescimento do consumo de energia per capita.

Os seguintes dados estatísticos, colhidos na publicação BP Statistical Review of World Energy 2021, em gigajoules per capita, apontam os seguintes números, por área geopolítica, para 2020, de consumo de energia:

a) na América do Norte (Canadá, EUA e México) – 216,8

b) na América Central e do Sul – 49,9

c) na Europa – 113,6

d) na Comunidade dos Estados Independentes (CIS) – 150,4

e) no Oriente Médio – 139,6

f) na África – 13,9

g) na Ásia e Pacífico – 59,8

Há valores destoantes dentro de cada conjunto. Por exemplo, sempre em gigajoules per capita, o Qatar consome 594,2; os Emirados Árabes Unidos, 423,7; Cingapura, 583,9; Noruega, 358; Canadá, 361,1; enquanto Bangladesh consome 9,7; Paquistão, 15,7; Filipinas, 16,7; e a quase totalidade dos países africanos constituem o total de Outros, para se ter um dígito.

Deste modo, os projetos que se tentam na Conferência de Estocolmo, em 1972; na Eco-92 no Rio, em 1992; a Rio+20, em 2012; na Conferência das Nações Unidas (ONU) sobre as Mudanças Climáticas (COP26), realizada em Glasgow (Reino Unido), entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro de 2021; são verdadeiros assassinatos das populações mais pobres e desprovidas de energia do planeta.

Além do que, um fenômeno geológico como o tsunami, o terremoto, um encontro ou separação de placas tectônicas, para o que o homem não tem qualquer controle, provocam danos ambientais que milhões de chaminés fumegantes não conseguiriam em um século.

Com isso não estamos combatendo a produção de biocombustíveis, nem do uso da energia solar, eólica, das marés para produção de energia. Mas precisamos reconhecer que as tecnologias atualmente existentes, e as finanças nada investem ou criam oportunidade para as desenvolver, ainda dependem dos combustíveis fósseis e da energia hidráulica. E ao Brasil, do pré-sal e dos cursos d’água em seu território, só faltará energia em quantidade e custo compatível com sua economia por questão política, por governo subordinado a poder alienígena, que nos trate como colônias.

A questão da modernidade, desde as revoluções tenentistas, tomou conta das elites acadêmicas, políticas e das discussões na pequena sociedade alfabetizada de nosso País. Deste objetivo modificador surgiu a Revolução de 1930, o mais bem-sucedido movimento transformador no Brasil, que tem seus alicerces estabelecidos por Getúlio Vargas, ainda no Governo Provisório, e permanecem em construção até o governo de João Figueiredo, que fará a transição para o modelo regressivo do neoliberalismo financeiro.

Esse último foi catalisado pela inflação exorbitante que, longe de refletir qualquer aumento da base monetária, como supõem os teóricos monetaristas da Escola de Chicago, expressou as manobras especulativas de setores financeiros internos e externos que já vislumbravam oportunidades de lucro especulativo nos imensos recursos naturais brasileiros e no formidável patrimônio econômico erigido desde 1930.

Com a Nova República, sobretudo a partir da eleição de Fernando Collor de Mello em 1989, entra no Brasil o financismo neoliberal com suas falácias, mentiras e máscaras.

Entre estas máscaras está a da liberdade, que exige o fim do Estado, ente controlador das possibilidades humanas, do empreendedorismo. Também as supostas questões globais, como descrevemos em traços largos neste artigo. E o que efetivamente obtivemos, nestes 30 anos de governos neoliberais financeiros, foi a alienação do patrimônio nacional para interesses financeiros apátridas, como um fundo financeiro de Abu Dhabi adquirente da primeira refinaria brasileira e já reduzindo a diversidade de derivados para concentrar na produção dos mais rentáveis. E cobrando valores mais altos, pois detém verdadeiro monopólio regional.

Além da alienação patrimonial, tivemos a regressão na área do ensino, não apenas com a redução de orçamentos, mas com as infiltrações ideológicas neopentecostais e antinacionais em geral, deslocando o sentido nacionalista para o internacionalista e privando as novas gerações da capacidade de pensar e sentir o próprio País como algo seu e que sem o qual não será possível qualquer cidadania e pertencimento.

E, porque este tema será tratado em artigos seguintes na forma de propostas corretivas, é importante assinalar que a degradação das funções públicas, iniciando pelas mais relevantes no Judiciário, no Legislativo e no Executivo, não é mero acaso, nem é devida a personalidades ou pessoas incapazes. É um projeto de poder, este sim global, de sujeição aos interesses financeiros de todos os Estados, de todas as sociedades.

E estes interesses estão escondidos em paraísos fiscais e atuam por empresas que se denominam “gestores de ativos”, que, na sua prática, suprimem o sentido nacional do Estado tanto quanto o liberal da propriedade privada, encaminhando uma agenda totalitária pós-liberal em que o poder total será exercido por grandes corporações totalmente imunes ao escrutínio público e às demandas sociais intrínsecas à vida das nações.

 

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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