Reflexões para Teoria do Estado Nacional: representação, participação

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Protesto na reunião do G7 (foto de Ren Ke, Xinhua)
Protesto na reunião do G7 (foto de Ren Ke, Xinhua)

Governos fracos e impopulares se sucedem, capturados pela banca

 

“Acorda, falou a esposa, você está sonhando? Acabou de abrir os olhos. Por um segundo pensou que o resto também tinha sido sonho – tudo foi apenas um pesadelo. Mas não; fora real, muito real. O quarto estava claro, de persiana levantada. Em pé, diante do espelho do guarda-roupa, a mulher acabava de se aprontar para sair. Quê que ficou resolvido?, ela perguntou.” (Luiz Vilela, Tarde da Noite, Edição do Copibel, Belo Horizonte, s/data).

 

Representação e participação são dois dos principais temas de estudo da moderna ciência política. A cientista política teuto-estadunidense Hanna Pitkin elaborou o conceito seminal de representação enquanto “tornar presente alguma coisa que, apesar de tudo, não está literalmente presente”. Nesse sentido, a representação é uma forma simbólica e operacional de participação.

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A partir dessa definição preliminar, podem-se destrinchar várias questões. A primeira e mais óbvia: quem são os representados? O que se representa? O que o representante representa? Ela nos remete a uma das questões centrais da teoria política: a quem serve o poder?

Não há uma resposta universal. Para as democracias contemporâneas, é o povo, ou seja, a totalidade dos cidadãos, o que significa, nos termos de hoje, toda a população residente no país e juridicamente reconhecida pelo Estado nacional como pertencendo ao país, inclusive os não aptos a votar, como os menores de idade.

Devemos aos movimentos trabalhistas e populares a ampliação do conceito de povo e de cidadão, restrito, na época do liberalismo clássico, vigente até o início do século 20 na maioria dos países, aos homens ricos e proprietários. Outras sociedades elaboraram distintos objetos de representação. Para as monarquias absolutistas de direito divino, o ente representado era Deus, como ainda hoje é para o Vaticano. Para os regimes marxista-leninistas, era o proletariado, entendido como a imagem ideal da humanidade. E por aí vai.

Dentro dessa mesma questão, se pode perguntar quem são os representantes. Nas modernas democracias, entende-se que os representantes devem compartilhar do mesmo estatuto jurídico dos representados. Nas monarquias, porém, entende-se que a representação primordial da nação seja da dinastia reinante, mesmo que, sob a forma parlamentarista, a Coroa tenha que abrir mão de muitos dos seus poderes em prol dos representantes eleitos pelos súditos-cidadãos.

A segunda questão, não menos óbvia, porém mais difícil de ser respondida, é: como e por que meios se representa alguém? Novamente, não há resposta universal. A moderna democracia consagrou o método eleitoral direto para seleção dos governantes, com participação de todos os cidadãos aptos a votar. Nos regimes parlamentaristas, o Parlamento é a principal esfera representativa, e nos presidencialistas ou semipresidencialistas, a Presidência e o Congresso dividem essa atribuição, com graus distintos de importância conforme o ordenamento político e jurídico do país.

Surge, então, um problema: o representante eleito o é do conjunto da nação ou apenas da sua base eleitoral? No que tange à Presidência, é praticamente consensual que o presidente representa toda a nação, inclusive por ser, na maioria dos sistemas eleitorais, eleito por maioria simples. Em relação ao Parlamento, contudo, há controvérsia, pois é impossível que o conjunto dos parlamentares, sobretudo deputados, seja eleito pela maioria dos eleitores. Cada deputado possui um segmento específico de apoio e busca o voto nesse nicho.

Os defensores do mandato representativo, ou independente, afirmam que não importa quem sejam os seus eleitores, o representante representa todos os cidadãos e que, por isso, tem o direito de tomar decisões que contrariem os interesses da sua base de apoio, se julgar conveniente para os interesses gerais. Dessa forma, o mandato representativo é não revogável, pois o representante deve ter absoluta liberdade para decidir seus posicionamentos conforme a leitura pragmática da política geral.

Por outro lado, os defensores do mandato imperativo alegam que o representante deve prestar contas ao seu nicho específico e que o seu mandato é uma procuração outorgada por esses setores para cumprir uma agenda pré-determinada. Portanto, caso o representante desobedeça a essa agenda, poderia ter o seu mandato revogado, pois estaria traindo a sua função de representante.

Paralelo a isso, há aqueles que consideram que as formas institucionais da política tipicamente burguesa – Parlamentos, Presidência etc. – são insuficientes para operacionalizar a representação em um nível mais amplo. Esses defendem, então, a multiplicação das esferas de representação por meio do que chama de participação e de mecanismos participativos, como conselhos e comitês nos mais diversos níveis, como bairros, municípios, estados/províncias, empresas etc.

Evidentemente, nenhum deles nutre a ilusão de que todos os cidadãos participarão diretamente das instâncias e reuniões deliberativas. O que eles defendem é a ampliação dos espaços de representação para que os interesses e demandas populares sejam vocalizados de forma que a simples institucionalidade democrático-representativa não pode canalizar.

Naturalmente, todas essas discussões sobre representação partem do pressuposto da soberania nacional. Sem soberania, toda e qualquer representação será a representação de interesses e valores externos, e, dessa forma, qualquer forma democrático-participativa nada mais será do que uma farsa, um véu de mentira e ilusão para acobertar a ausência de autonomia e, portanto, de cidadania.

No caso do capitalismo contemporâneo, controlado pela banca transnacional, as nações se tornam cada vez mais espectros de dominação de poderes financistas, que, imunes às pressões populares e eleitorais, utilizam a sua capacidade corruptora para influenciar e determinar os rumos dos países independentemente da vontade e da anuência dos seus cidadãos.

A representação e as instituições democráticas são, assim, progressivamente esvaziadas, num cenário onde governos fracos e impopulares se sucedem uns aos outros sem que o país mude uma vírgula no seu processo de captura pela banca. Aturdidos e incrédulos, os cidadãos se abandonam à apatia, ao cinismo e/ou a escapismos os mais diversos, reforçando involuntariamente a opressão que lhes desgosta.

Nesse cenário, não são suficientes trocas de governo, reformas políticas, mudanças constitucionais, plebiscitos e referendos ou o que valha. A esperança fácil suscitada por esses eventos logo é esmagada pela realidade difícil do poder que não emana de dentro do país, mas de fora, e que não se sente nem um pouco arranhado por movimentações superficiais. Muitas vezes até os estimulam, para reforçar as divisões e atritos que levam as partes contendoras a buscar nesse poder externo, ao qual nunca faltam recursos financeiros, o ponto de apoio para prevalecer nas disputas pelas pequenas vantagens de sócio menor desse esquema de poder.

É preciso libertar a nação do sistema financeiro transnacional para internalizar os centros de decisão e, a partir disso, dispô-los da forma mais conveniente para que haja uma genuína representação e participação. Isso passa por tomar o controle das “torres de comando” nacionais e fazê-las operar para dentro e não mais para fora. Não é tarefa fácil, mas a soberania e a democracia no mundo da política e da geopolítica reais nunca foram fáceis.

 

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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