Legislação que organizava a vida romana ainda é objeto de estudo no século 21
Isaac Asimov (1920–1992), na Introdução de The Roman Empire (1967), referindo-se aos primórdios de Roma, ressalta que aquele povo lutou para criar um governo eficiente. Livrarem-se de reis, criarem a república, elaborarem um sistema de leis; tiveram vitórias e derrotas.
Faltou apenas concluir que deu ao mundo ocidental o primeiro Estado Nacional democrático. E com tal permanência que a legislação que organizava a vida romana ainda é objeto de estudo no século 21. Sistema jurídico laico, defensor dos direitos individuais, mas subordinando o privado ao interesse público.
De início houve a Lei das XII Tábuas, o primeiro documento legislativo dos romanos, onde eram explicitados direitos, deveres e o processo jurídico. Algumas normas foram alteradas ainda antes da República, como a do casamento interclasses, porém mais curioso para estes tempos de influência das finanças no Estado é o dispositivo da Tábua IX: “Se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado receber dinheiro para julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto”.
A existência de patrícios e plebeus, como se lerá na transcrição de Tito Lívio, ocorre da origem heterogênea dos construtores de Roma. Recordemos o artigo “Os Primeiros Romanos”, destas “Reflexões para Teoria do Estado Nacional”, que descreve as populações do Latio e das colinas no entorno do rio Tibre.
“Crescebat interin urbs munitionibus quum alia atque alia appetendo loca in spem magis futurae multitudinis quam ad id quod tum hominum erat munirent. Eo ex finitimis populis turba omnis sine discrimine liber an servus esset avida novarum rerum perfugit: idque primum ad coeptam magnitudinem roboris fuit. Quum jam virium haud poeniteret consilium deinde viribus parat. Centum creat senatores sive quia is numerus satis erat sive quia soli centum erant qui creari patres possent. Certe ab honore patriciique progenies appellati” (Titi Livii Narrationes, Lib. I, 6-8).
(“A cidade cresceu no meio das fortificações, quando, procurando um e outro lugar, a fortificaram na esperança de uma população futura e não daquela que era dos homens de então. Para lá, toda a multidão dos povos vizinhos fugiu sem perigo, fosse ele um homem livre ou um escravo, ansioso pela revolução; e esta foi a primeira vez que a grandeza de sua força começou. Como ele não estava mais insatisfeito com sua força, ele então preparou seus planos (para ter) força. Ele criou cem senadores, ou porque esse número era suficiente, ou porque havia apenas cem senadores que podiam ser eleitos. Certamente foram chamados pela honra e pela descendência dos patrícios”. Tradução livre das Narrações de Tito Lívio, I, 6-8).
Recordemos esta Roma primitiva, de etruscos, samnitas, úmbrios, sabinos e latinos, entre outros. Até a formação da aliança latina, diversas batalhas ocorreram entre os povos que formariam o primeiro Estado Romano, a Realeza, que surge em 753 a.C. e se estenderá até 509 a.C.
Este período monárquico tem no Rei o supremo mandatário, mas junto a ele são criados dois órgãos de aconselhamento: o Senado e os Sacerdotes, e as Cúrias, instituições que o aproximam do povo: nobres e plebeus.
O Senado, um conselho de anciãos, reunia os “patres famílias”. Reminiscência das lideranças de famílias ou tribos que seguiam a liderança, ao mesmo tempo militar, econômica, política e religiosa. O sentido territorial dos senadores serve como confirmação desta interpretação.
Como assinalam diversos autores, quer historiadores, quer juristas romanistas, há uma evolução bastante pacífica, se considerarmos o tempo, na formação da República, o próximo período histórico e muito importante para estas nossas reflexões.
Algumas notas sobre a Realeza devem ainda ser assinaladas. Primeiro, o reinado não era hereditário. A escolha dos reis cabia aos senadores, que recebiam este poder da “Assembleia das Cúrias”. As cúrias eram grupamentos das três estirpes das originárias tribos romanas: Tities, Luceres e Ramnes. Estas consolidavam as 35 descendências que foram surgindo ao longo do tempo.
O chefe de cada uma denominava-se “curator tribus” e nelas havia magistrados com diversas funções, como o “tribunus aerarii”, que se encarregava da gestão financeira da tribo (pagamento aos soldados, cobrança de impostos etc.) e recrutava os soldados que integrariam as legiões. O sistema de votação era praticado da seguinte forma: voto individual de todos os membros, sendo estes votos contados pela tribo que, em seguida, emitia um voto único, baseado na maioria dos votos individuais.
Outra característica importante é que, com a ampliação geográfica dos limites de Roma, as tribos passaram a indicar mais a cidadania romana do que sua origem territorial.
Outra instituição formada pelas cúrias é a “comitia curiata”, que permitia ao rei comandar o exército e administrar a justiça.
Nada de multiétnicos, nada de congregar segmentos populacionais na exclusão
A chegada da República (509 a.C.) não encontra interpretação consensual entre os historiadores: há quem afirme ser reação dos patrícios à participação popular, outros consideram a libertação dos reis tiranos ou dos “etruscos Tarquínios”. No entanto, a existência dos pretores – praetor maximus e praetor minor – convergindo para o colégio de cônsules faz a maioria dos romanistas se inclinarem para a transição pacífica. Também se encontra em passagens de Tito Lívio, citado, principalmente na descrição das funções pretórias, mostrando apenas as disputas normais de administrações personalizadas (L. Iunius Brutus, P. Valerius, M. Horatius Puvillus, v.g.), conforme também constatam Henry Stuart Jones (1867–1939) e Hugh Last (1894–1957), em The early Republic, 1928, de The Cambridge Ancient History.
Na base da formação do Estado, na República, estavam a Assembleia da Plebe, dois Comícios, grupando as tribos geograficamente identificadas (Comício Curiato e Comício Tributo), e Comício específico para as Centúrias (Comício Centuriato).
Brevemente, como já sabemos, a “curiata” tinha por base as três tribos originárias. Na “tributa”, também na base tribal (regional), as assembleias congregavam patrícios e plebeus para designar magistrados, juízos militares, estabelecer possíveis penas e atribuições religiosas.
Desta base eletiva e ampla, surgiam os Tribunos da Plebe e os gestores (magistrados) das principais instituições romanas: questores, edis, censores, pretores e cônsules. Estes gestores eram designados pelos inicialmente 300 senadores (acrescidos de outros tantos) e pelos “comícios” já descritos. Todo esse conjunto que nomeava o ditador, o chefe supremo da República.
Portanto, caros leitores, não nos deixemos enganar pelas nomenclaturas, observemos as origens do poder e seus limites para concluir que a República como a Realeza tiveram Estados democráticos participativos, e que esta participação estava restrita a um tipo de capacitação que tinha origem na geografia e nas condições sociais.
O período da Realeza tanto quanto o da República Romana transmitem-nos importantes ensinamentos para os Estados Nacionais contemporâneos, ideologizados pelas finanças apátridas.
Primeiro a identidade nacional era claramente a da miscigenação; o romano se viu não o etrusco, o sabino, o latino, mas o romano. Nada de multiétnicos, nada de congregar segmentos populacionais na exclusão ou na diferenciação, mas a unidade da nação na própria identidade nacional. Assim Roma teve a força de expandir conquistando o mundo ocidental.
Observem o esforço do capital financeiro, do volume de dinheiro aplicado para separação de negros, índios, mulheres, sulistas, paulistas, nordestinos, como se fossem populações específicas e não brasileiros. E a roupagem é tão fantasiosa, tão encobridora dos reais propósitos, que já conquistou a Bolívia e já resultou em golpe no seu Estado Plurinacional, que abre a porta para desagregação das etnias ao invés da unidade boliviana; agora se infiltra na nova constituição chilena, como já ocorreu na equatoriana.
Toda vez que surge no mundo colonizado uma ideia que parece ser um avanço no sentido da proteção de uma parcela da humanidade, pergunte-se: por que não proteger a humanidade como todo, a partir dos desvalidos, independente de etnias, tendo por base apenas a questão da sobrevivência digna e da consciência do ser social? A formação do Estado Romano, que ainda aprofundaremos nesta série, é rica neste ensinamento.
Segundo, a participação direta no nível em que há compreensão da questão que lhe afeta. Não se trata de seccionar por técnicas, mas de grupar pelo interesse coletivo. As questões que exigiam, por exemplo, a proteção do espaço territorial, das vidas e bens, tinham início nas cúrias e cresciam a partir desta base.
Como é evidente, num período em que havia busca para condições mais favoráveis de vida pela precariedade dos recursos tecnológicos, defender os territórios se aproxima da defesa pessoal nestes dias que as finanças lançam cada vez maior leva de desempregados e desesperançados nas ruas. Pode-se pensar que um governo distante desta questão, pela residência/classe/recursos, pode definir a proteção dos favelados, das cada vez maiores populações de rua? Conhecer os locais, os métodos mais eficazes? Um “comício curiato” poderia ser mais uma solução na estrutura organizacional do Estado.
A expansão de Roma na península se dá desde os períodos da Realeza e da República, ao mesmo tempo em que são elaboradas as leis que farão do Direito Romano importantíssimo elemento formador da cultura ocidental.
Como é evidente, a legislação romana não surgiu como um ou alguns códigos tratando das questões substantivas e processuais do direito. Ao longo do tempo foram surgindo compilações que congregavam e reformavam algumas vezes os temas que eram debatidos pela sociedade e, em especial, nos organismos destinados a estabelecer normas de conduta individual e social.
Algumas compilações guardaram o nome de seus autores, como a de Flavius Petrus Sebbatius Justiniano (482 (483?) – 565), o “Código Justiniano”, outras ficaram anônimas, mas não menos importantes para conhecer a evolução da sociedade e das instituições, como as denominadas “compilações antejustinianéias”.
Sinteticamente, o Direito Romano pode ser estudado na forma do Direito Civil, pois tal como o Código Civil dos Franceses ou Código de Napoleão de 1804 contém quase as mesmas divisões: Direito das pessoas, Direito das coisas ou dos bens, Direito das obrigações, Direito da família e Direito das sucessões, além das normas processuais e da organização judiciária.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.