‘Ser carioca é acreditar que o Cristo jamais nos negará seus braços redentores’
O Café Lamas, tradicional restaurante do Flamengo, fundado em 1874, foi pequeno para a tarde/noite de autógrafos que aconteceu, na última terça-feira, dia 27, quando foi lançado o livro Rio, da Glória à Piedade, pela Rasmaninho Editora de Arte, organizado por Hélio Brasil.
Trata-se de uma obra coletiva produzida por um grupo de amigos, todos eles ligados às letras e que nasceu de uma forma espontânea, a partir de encontros em almoços, jantares, tertúlias e muito bate papo pelos bares cariocas. São 11 autores, apaixonados pela Cidade Maravilhosa, com idades que variam dos 50 aos 90 anos, sendo dois deles gaúchos, um baiano, um alagoano e um importado da Terra de Camões.
Os gêneros apresentados são variados e passam pelos contos, crônicas e poesias. São textos saborosos, divertidos e muito bem-humorados, com pitadas de letras de músicas emblemáticas e que embalaram nossas vidas. O leitor pode escolher por qual autor deseja começar a ler a obra e distrair-se com o conteúdo que terá à sua disposição.
O prefácio é da lavra de Alexei Bueno, que, espirituoso, destaca que o Rio é uma cidade de todos os contrastes, “que tem um rio no nome e nunca teve um rio digno de tal nome em seu território, só conseguindo resolver séculos de mau abastecimento de água graças a cursos fluviais de municípios vizinhos”. O Rio de Janeiro, de acordo com ele, foi erguido em local deslumbrante e perfeito para a defesa de uma baía, mas dos mais difíceis, dos mais desafiadores para nele construir-se uma cidade.
As crônicas e poemas do escritor carioca Hélio Brasil são estupendas, e é leitura obrigatória “Um imortal sorriso de carioquice”; os textos do alagoano Nireu Cavalcanti, arquiteto, historiador e artista plástico, um dos grandes conhecedores da história carioca, impressionam pelos detalhes apresentados; as crônicas sobre a vida literária e política do jornalista carioca Rogério Marques nos trazem a dimensão do intelectual que ele é; o levantamento da vida livreira da cidade escrito pelo professor Gustavo Barbosa dá um colorido extraordinário à obra; assim como os textos e poemas amorosos do lexicógrafo, filósofo e blogueiro Ivo Korytowski revelam a sensibilidade do autor.
Já os versos marcantes da poeta e professora de literatura Suzana Vargas, única mulher autora do livro, gaúcha de Alegrete e que escolheu o Rio para viver há 50 anos, nos remetem a grandes reflexões; isso sem falar no belíssimo relato sentimental das viagens do português, nascido em Chamusca, o jornalista Joaquim Antonio Emídio ao Rio, que faz incursões para lá de interessantes ao bairro da Lapa, lugar ideal, segundo ele, para namorar.
As memórias pessoais e urbanas do jornalista e escritor baiano Eliezer Moreira são instigantes, enfatizando, em um texto, ser o Rio a sua mais longa viagem; assim como merecem ser destacadas a prosa lendária da Cinelândia e nas sequências poéticas do arquiteto e poeta carioca Eduardo Mondolfo, que trabalhou com Oscar Niemeyer. “Cenas da Cinelândia em quatro movimentos” encanta e seduz.
Vale enaltecer também e com grande destaque a suíte de poemas e de épocas diversas do poeta, ensaísta, crítico, tradutor e editor carioca Alexei Bueno, nascido em Copacabana e transferido para a Lapa, cujo caráter parcialmente memorialístico explica o título do livro.
Aliás, no prefácio, ele enaltece o bairro da Glória, dando belo destaque a magnífica Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, da década de 1730, uma das obras-primas da arquitetura religiosa colonial luso-brasileira, erguida no local onde se travou uma das batalhas mais decisivas para a expulsão dos franceses da cidade, e à Piedade, bairro pobre e distante, que tem até os dias atuais como acontecimento mais marcante o assassinato de Euclides da Cunha, em 15 de agosto de 1909, dia de Nossa Senhora da Glória.
O gaúcho André Seffrin é ensaísta, crítico literário e pesquisador. Ele contribui com uma valiosíssima crônica de memórias pessoais e culturais, que muito empolga o leitor, com destaque para “Miúda crônica de saudades com véu de alegoria, um Rio de muitas margens”.
E assim o leitor vai lendo um livro recheado de episódios traduzidos em contos dos mais incríveis, poesias das mais fantásticas e crônicas exuberantes, reunidos por autores que, com seus textos, nos dão momentos de grande prazer intelectual.
Como escreve Hélio Brasil, o organizador da obra, “ser carioca não é nascer no Rio, nem mesmo no Méier, no Irajá ou, que seja, nos confins da Barra ou da Prainha”. Ser carioca é, na realidade, de acordo com ele, ouvir o zumbido que fazem o fragor das ondas, as risadas e os sussurros dos generosos cantos da paisagem, o Pico da Tijuca, as verdes encostas de um bem gentil Jacarepaguá.
Esse livro revela, nas palavras do Hélio Brasil, que “ser carioca é acreditar que o Cristo jamais nos negará seus braços redentores; que, sempre de olho, Sebastião, Jorge e Antonio expulsarão as nossas lágrimas”.
Rio, da Glória à Piedade é poesia pura e da melhor qualidade.
Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.