O homem americano
O surgimento do homem, com as características físicas e intelectuais do atual, deu-se no território onde hoje se encontra a Etiópia, há mais de 30 mil anos, e a primeira organização foi aquela que se desenvolveu nas margens do rio Nilo, a nilótica.
As seguintes organizações humanas também se formaram, naqueles remotos tempos, junto aos rios: na Mesopotâmia, nos rios Tigre e Eufrates, e no extremo oriental da Ásia, a civilização Zhou, ao longo e na foz do rio Amarelo, onde hoje estão as atuais províncias chinesas de Hebei e Shandong.
O tempo e a diversidade de obstáculos que enfrentaram os homens, caminhando da África ao leste da Ásia, fez com que a civilização Zhou se distinguisse da nilótica, pelo acúmulo cultural.
Este homem mais preparado atravessou a ponte de gelo, formada na glaciação Würn, ligando a Ásia à América para vir ocupar o “Novo Mundo”. E o primeiro lugar acolhedor encontrado foi no território do atual México, formando a cultura asteca no Platô Mexicano.
Enrique Peregalli (A América que os Europeus Encontraram, Editora Atual e Editora da Unicamp, Campinas, 1986) descreve as “Altas Culturas” pré-colombianas aquelas que compreendem a “Confederação Asteca, as cidades-estado Maias e o Império Inca”.
A prova mais evidente do nível de desenvolvimento da Confederação Asteca são seus textos em língua nauatle, salvos da destruição promovida pelo rei Felipe II, da Espanha, por padres franciscanos, e que foram traduzidos e anotados por Georges Baudot (G. Baudot e Tzvetan Todorov, organizadores, Relatos Astecas da Conquista, tradução para o português por Luiz Antonio Oliveira de Araújo, Editora Unesp, SP, 2019). Do Códice Florentino, destes “Relatos” retiramos “Os oito presságios funestos”, sinteticamente, como seguem:
“Apareceu, dez anos antes dos estrangeiros, um presságio de desgraça como chama de fogo, uma língua de fogo, como aurora. E se mostrou durante um ano inteiro”.
“Em Tlacateccan surgiu um fogo que ardeu com rapidez extrema devorando toda casa e quanto mais se jogava água, mais o fogo ardia”.
“Um templo foi ferido por um raio. Não era uma chuva torrencial, mas um leve chuvisco que caiu sobre a casa de palha”.
“O sol brilhava quando caiu um cometa, de cauda muito comprida, dividido em três partes”.
“A água se pôs a borbulhar e redemoinhar engolido as casas”.
“A mulher chorava, gemia e dizia: meus filhos amados, chegou a hora de nossa partida”.
“Pescaram um pássaro como um grou com a rede, no lago. Havia um espelho redondo na cabeça do pássaro, e mostrava um céu com estrelas. Quando Montezuma olhou pela segunda vez, viu as pessoas correndo como se preparassem para guerra”.
“E muitas vezes apareciam homens deformados com duas cabeças e um só corpo”.
O religioso Diego Muñoz Camargo (1529-1599), nascido no México, filho de pai espanhol e mãe nativa, foi também cronista de destaque, pertencente a um grupo de cronistas mestiços. Sua História de Tlaxcala permanece como fonte importante para história do México. E nela encontra-se, em síntese, sua interpretação desses presságios como segue.
Dez anos antes da chegada dos espanhóis, houve imenso incêndio que se considerou um mau agouro. Os quatro últimos podem ser assim considerados: os vários cometas a agressão que colocou as pessoas clamando, gritando e gemendo; o vento e a água subindo cobrindo mais da metade das casas e as desmoronando; a mulher que chorava pensava como esconder os filhos das catástrofes; na cabeça da estranha ave pescada, Montezuma viu esquadrões marchando para o combate e, por fim, um corpo de duas cabeças indicava o fim dos indígenas e os novos habitantes.
O que Enrique Peregalli, citado, chama “Confederação Asteca” constituía um conjunto de 38 províncias, onde povos de língua, religião e costumes diferentes conviviam. Eram os zapotecas e os mixtecas, da costa do Pacífico, e os totonacas, do golfo do México.
Os zapotecas tinham a liderança religiosa de um sacerdote celibatário. Seus conhecimentos astronômicos, seu calendário, a fonética, a escrita ideográfica (ainda não decifrada), além do artesanato em barro, cristal e pedra, e confecções têxteis são mostras do grau civilizatório.
Quanto aos mixtecas, suas lendas e tradições constituem importante fonte de reconstrução histórica. Havia unidade religiosa, que convivia com a divisão política em pequenas cidades-estado. Lamentavelmente a ignorância e a ambição do poder dos espanhóis queimaram os pergaminhos mixtecas, por motivos “religiosos”. Mixtecas e totonacas se uniram contra os zapotecas.
Totonacas eram comerciantes e produtores de instrumentos; deles ficou o jogo do voador, “realizado com quatro participantes amarrados nos tornozelos por longas cordas, ligadas a um pequeno tambor giratório, colocado na extremidade superior de um poste de 25 metros de altura” (apud E. Peregalli).
Genocídio europeu
No México, como ocorreu em todas as Américas, a presença europeia resultou no genocídio que atingiu aproximadamente 90% da população nativa. Foi o resultado da transformação da Europa das dinastias familiares para Europa dos Estados, na passagem dos séculos 15 e 16, e em nova economia, da extração mineral, da apropriação dos recursos agrícolas, do comércio e da expansão marítima.
Portugal deu partida circundando a África, sendo seguido pela Espanha, Holanda, França e Inglaterra, os grandes Estados colonizadores, com pequenas migrações irlandesas e suecas para América do Norte. As cidades italianas mediterrâneas perderam expressão a partir dos “descobrimentos marítimos portugueses”.
O Tratado de Tordesilhas, celebrado, em 7 de junho de 1494, entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela, entregou quase toda América aos espanhóis. Estes transplantaram sua estrutura burocrática-administrativa, hierarquizada e solidamente assentada, para o além mar.
De norte para sul, constituíram quatro vice-reinados:
- a) Nova Espanha, em 1535, compreendendo o México, e partes dos Estados Unidos da América (EUA) atuais, quais sejam, totais ou parcialmente, os estados do Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México, Texas e Utah;
- b) Nova Granada, em 1717, compreendendo os atuais países Panamá, Colômbia, Equador e Venezuela;
- c) Peru, em 1542, que originalmente continha o atual Peru e a maior parte da América do Sul; e
- d) Rio da Prata, em 1783, compreendendo os atuais Estados Nacionais da Argentina, Paraguai e Uruguai.
Além dos vice-reinados, constituíram também as seguintes Capitanias Gerais: Cuba (1777), Guatemala (1542), compreendendo Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Guatemala; Venezuela (1777), para conceder a este território maior autonomia, retirando-o do Vice-Reinado da Nova Granada; e do Chile (1798), correspondendo ao Chile e às regiões ocidentais da Argentina.
Existia além do Rei, autoridade suprema, o Conselho das Índias e a Casa de Contratação, esta em Sevilha, para coadjuvarem as decisões reais.
De maior interesse para este artigo, tem-se o Vice-Reinado da Nova Espanha. A Nova Espanha não só administrava as terras compreendidas na América, mas o arquipélago das Filipinas, na Ásia.
Tendo sido a primeira estrutura de gerenciamento nas Américas, faltou-lhes a compreensão da realidade local, quer física quer cultural. A esta incompreensão os conquistadores responderam com o massacre, e ao primeiro desconhecimento deixaram de aproveitar as possibilidades de desenvolver o modelo econômico que enriqueceria mais e por maior tempo a Espanha. Ficaram fascinados e cegos pelo ouro e pela prata que extraíram a custa das vidas astecas. E perderam estes voláteis recursos para a sempre hábil e oportunista Inglaterra.
É relevante entender que a Europa passava pela construção do que se denominou mercantilismo, que significava dar poder aos recém-criados Estados para disputa de fontes de recursos objetivando aumentar seus tesouros, e constituir empresas de navegação e de manufaturas, para vender produtos processados nas áreas sob seu domínio.
Primeira independência
“Em 16 de setembro de 1810”, conforme escreve Pedro Fuini no artigo “Início da Guerra de Independência no México” (site “Hoje na História”, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), SP, 16/9/2022,) “tem início a Guerra de Independência do México. Nesta data ocorreu o Grito de Dolores, no estado de Guanajuato, pelo padre Miguel Hidalgo”.
“Ligado às ideias do Iluminismo, Hidalgo liderou um movimento de insatisfação popular com a Espanha, que colonizou o México, e fazia parte de uma conspiração que pretendia derrubar o vice-rei (representante da Coroa espanhola na colônia)”.
“Prevendo que poderia ser preso, o padre incitou as pessoas que participavam de sua missa no dia 16 de setembro de 1810 a se rebelar contra os governantes”. “Quem assistia a missa do Hidalgo era majoritariamente a população de baixa e média classe, e essa população era mestiça e indígena. Eles seguem o padre, e o que inicia sendo um protesto pacífico acaba virando uma rebelião extremamente violenta”, explica Laís Olivato, doutora em História Social pela FFLCH da USP”.
Neste período, que constituía a Era Napoleônica, desde 9 de novembro de 1799 até 28 de junho de 1815, tem início, em territórios de Nova Espanha e Nova Granada (México, Colômbia e Venezuela), os processos de independência, pois o rei espanhol Fernando VII havia sido destituído por José Bonaparte (março de 1808). A Espanha colonial se encontrava enfraquecida, voltada para a recuperação europeia.
A rebelião mexicana se espalharia rapidamente, incorporando cada vez mais pessoas ao exército popular de Hidalgo. Ele seria fuzilado em 1811, e o comando do processo passaria para outro clérigo, José Morelos, também importante liderança.
Mesmo voltando Fernando VII ao trono espanhol, a revolução mexicana prossegue com o general Agustín de Iturbide, que obtém a Independência em 27/9/1821, distanciada no entanto daquela rebelião popular, encetada pelo padre Hidalgo.
Isto significou que ficar livre do governo espanhol não significava ser independente, ou melhor, soberano, que o povo havia assumido o poder.
Desenvolve-se debate bastante atual sobre estas condições ideológicas decorrentes, entre outros textos, do livro de Benedict Anderson, Imagined Communities (1983).
A compreensão de independência é também questão comunicacional. Anderson atribui à comunicação escrita este papel, pois a virtual ainda engatinhava quando lançou seu trabalho. E deste debate surgem as identificações literárias na formação do nacionalismo, do empoderamento do país que surge. A comunicação de massa mostra-se, cada vez mais significativa na construção das soberanias e cidadanias. O mundo unipolar usa e abusa de seu controle midiático.
Cosme Damián Agustín de Iturbide y Arámburu (1783-1824), militar, foi o tipo de personalidade construída pelos medos da elite. Ter o povo do padre Hidalgo no poder, para os que usufruíam a condição diferenciada de riqueza e mando no México colonial, era situação mais prejudicial, a menos desejada, do que se aproveitou Iturbide para se tornar, entre 19 de maio de 1822 e 19 de março de 1823, Agostinho I, Imperador do México.
Aproveitando a crítica de Benedict Anderson, Natividad Gutiérrez escreve: “A consciência cultural, promovida pela ideologia crioula para justificar a independência mexicana e transmitida por meio da imprensa gráfica, só conseguia exercer influência sobre um estrato reduzido da sociedade. A estratificação etno-racial e de gênero colocava impedimentos sociológicos que excluíam a possibilidade de um vasto público leitor” (N. Gutiérrez, “O Nacionalismo no México: em busca das leitoras da “Comunidade Imaginada”, in Marco A. Pamplona e Maria Elisa Mäder (organizadores), Revoluções de independências e nacionalismos nas Américas, volume 2, “Nova Espanha”, Paz e Terra, SP, 2008).
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.