Saga mexicana – na construção do Estado Nacional no mundo multipolar

História e política mexicana: o a ascensão de AMLO e Claudia Sheinbaum, e o impacto do neoliberalismo. Por Pedro Augusto Pinho.

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Bandeira_Mexico_Foto_Juan_Carlos_Arellano_Freeimages.com
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“Para esconder a verdadeira falta de conhecimento, fora apresentada uma explicação que correspondia à intervenção divina. Para a mentalidade primitiva teria sido a maneira plausível e satisfatória de explicar qualquer coisa sobre a qual nada se sabia” (Clifford D. Simak, City, 1952, tradução livre).

Durante a década de 1980, os grandes mercados de capitais, como Nova York, Londres, Amsterdã, promoveram as desregulações financeiras. Pessoas e bens, naturais ou produzidos, precisavam de um “passaporte” para sair e entrar dos países. As expressões monetárias, não. Circulavam livremente por redes virtuais.

Não apenas para o México e o Brasil, mas para todo mundo capitalista e socialista criou-se nova condição operacional para generalizar a corrupção. Esta atingiu níveis até então desconhecidos, levando ao fim a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, 1991), a condenações e alterações no poder da República Popular da China (China) e a decuplicação de “paraísos fiscais” em menos de 20 anos.

Até 30 de novembro de 2000, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), a princípio nacionalista (Manuel Ávila Camacho e Adolfo López Mateos) mas ao fim neoliberal, foi o grande partido mexicano do século 20.

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A corrupção neoliberal trouxe a questão da moralidade para o palco das lutas políticas no início do século 21. Após 71 anos de domínio do PRI, o México é governado por Vicente Fox, do Partido de Ação Nacional (PAN), prometendo punir os grandes corruptos e corruptores da Nação, o que não aconteceu.

Seguiram-se, do mesmo PAN, Felipe Calderón (1º/12/2006 a 30/11/2012) e, retornando o Partido Revolucionário Institucional, o presidente Enrique Peña Nieto (1º/12/2012 a 30/11/2018). Mas a corrupção não era disfunção política personalizada, era a consequência do imenso engodo neoliberal.

O neoliberalismo não se apresenta como modelo da concentração de renda, dos privilégios rentistas, da não tributação enquanto o trabalho sofria cada vez mais encargos que, ao fim, aumentavam a renda das finanças. O neoliberalismo procurou ser visto, e para isso dominou todas os recursos da comunicação, escrita, falada, televisada e virtual, como a ideologia da liberdade, do triunfo dos empreendedores, da iniciativa individual. E chegava ao cinismo de renomear o trabalho sem direitos, trabalhistas e previdenciários, de empreendedor individual, os MEIs.

Esta situação, variando apenas nas nomenclaturas, se espalha pelo mundo, especialmente naqueles países, como México e Brasil, subordinados ao Império Estadunidense.

E passados os primeiros 20 ou 30 anos de governanças neoliberais, o mundo se mostra mais desigual do que nunca. Até nos Estados Unidos da América (EUA) a miséria já é observada na população de rua, na disseminação de doenças, na fome e na morte.


Um novo momento na política mexicana

A eleição de Andrés Manuel López Obrador, para o período 1º/12/2018 a 30/11/2024, foi mais do que o surgimento de novo partido – Movimento Regeneração Nacional (Morena) – e o maior número de votos na história do México (mais de 30 milhões de votos) para o cargo e o maior percentual em eleição presidencial em 36 anos (53%).

O que fez López Obrador? Fundamentalmente, trouxe a contemporaneidade política para dentro das fronteiras mexicanas. O neoliberalismo foi o momento do “fim da história”, da “globalização”, do “pensamento único”, da unipolaridade. Porém, passada a primeira década, ou década e meia, começa a surgir em países de culturas mais fortemente arraigadas, a contestação ao neoliberalismo. A China se destaca. Não pelo marxismo-maoísmo mas pelo confucionismo.

O neoliberalismo é pensamento ocidental e como tal construído por conceitos, cuja precisão dá força aos pensamentos. O confucionismo não procede desta maneira linear e sim espiral.

Vejamos como a sinóloga e filósofa francesa Anne Cheng discorre sobre o pensamento chinês, o confucionismo, na Histoire de la pensée chinoise (Éditions du Seuil, 1997, em português na tradução de Gentil Avelino Titton para Editora Vozes, Petrópolis, 2008).

O pensamento chinês (confuciano) descreve seu redor em círculos cada vez mais estreitos, buscando aprofundar um sentido mais do que esclarecer um conceito.

Aprofundar significa deixar descer cada vez mais fundo dentro de si, em sua existência, o sentido de uma lição, de uma experiência. É assim que são utilizados os textos na educação chinesa: objetos de uma prática mais que de uma simples leitura.

“Testemunhos da palavra viva dos mestres, eles não se destinam apenas ao intelecto, mas à pessoa toda; servem menos para raciocinar do que para ser frequentemente praticados e, finalmente, vividos”. E conclui Cheng: “Não o raciocinar sempre melhor, mas o viver sempre melhor sua natureza humana em harmonia com o mundo”.

A eleição de López Obrador, dada como certa, em 2018, não se previa transformadora, principalmente pelo poder das finanças, “Citigroup, incluindo seus meios hegemônicos (Televisa e Tv Azteca, de Azcárraga e Salinas Pliego, ambos megamilionários da lista da Forbes)”, afirmava Carlos Fazio (“AMLO e o verdadeiro poder”, em La Jornada, 2/7/2018).

Porém, logo o Governo do México, empresários e sindicatos chegaram ao acordo para aumentar em 16,2% o salário mínimo geral, que passa de 88,36 pesos, por dia, para 102,68 pesos, a partir de janeiro de 2019.

Esta articulada mudança na remuneração do trabalho não se adequava à perspectiva neoliberal, unipolar, pois fruto de parcela da sociedade mobilizada para reconhecer a relevância da menos poderosa politicamente.

O homem na sociedade neoliberal é repartido por características individuais, não sociais. Daí os identitarismos, raciais, sexuais, que dispõe de veículos de comunicação porém não tem força para alterar situações, não obtêm resultados.

A prática neoliberal é falaciosa, hipócrita, mendaz e, principalmente, secessionista, separatista, não integracionista. O vínculo histórico é a primeira diferença entre o novo rumo do México das governanças neoliberais. Também difere dos governos petistas que, obrigados eleitoralmente, jamais reconheceram a transformação provocada pelo getulismo ou pelo nacional trabalhismo na própria organização do Estado Nacional Brasileiro.

“O presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) colocou seu governo em um horizonte histórico, retomando trajetórias passadas, mas também apontando para trajetória que deve ir além dos seis anos de seu mandato para se completar. A primeira transformação foi a Independência em 1821, a segunda a Reforma (1857-1861) dos liberais liderados por Benito Juárez contra os conservadores, e a terceira a Revolução Mexicana (1910-1917) de Emiliano Zapata e Pancho Villa contra a ditadura de Porfírio Díaz e o latifúndio” (Giorgio Romano Schutte no Brasil de Fato, 2 de junho de 2024).

Schutte busca entender o sucesso de López Obrador (AMLO). No mesmo artigo no Brasil de Fato escreve: “Certamente não faltaram, ao longo de seu mandato, ataques e campanhas dos interesses conservadores e das elites tradicionais, inclusive por meio da imprensa comercial. Estes se expressaram na campanha eleitoral, por exemplo, com acusações de autoritarismo e corrupção que levariam o México inevitavelmente ao caminho da Venezuela e Nicarágua”.

Em primeiro lugar, AMLO entrou com a força de uma história política que ele cultiva. No final da década de 1970, dirigiu o Centro Coordinador Indigenista e teve a oportunidade de conhecer a realidade das comunidades pobres e povos originários. Em sua militância política, liderou muitos movimentos de camponeses, indígenas e trabalhadores até se projetar nacionalmente.

Quando ele perdeu as eleições para governador de Tabasco, seu estado de origem, em 1994, denunciou fraude e organizou uma caravana de protesto, que ficou conhecida como “Éxodo por la Democracia” e que, durante 51 dias, atravessou 700 km para ocupar a praça central na Cidade do México, o Zócalo. Nos anos que se passaram desde então, utilizou em muitas ocasiões as mobilizações populares para mostrar força política”.

Mobilização popular e a rica história das insurreições mexicanas formam o liame que sai vitorioso nas urnas. Não há similar nem na Venezuela nem na Nicarágua ou em qualquer outro país. É a incompreensão da multipolaridade que trabalha com as nacionalidades, com as culturas únicas formadas nas relações dialéticas das sociedades, suas miscigenações, e os ambientes físicos nos quais se desenvolvem.

Não necessariamente os articulistas, mas os órgãos de comunicação de massa para os quais trabalham não podem se afastar da globalização, da moeda única, unipolar.

A imprensa brasileira, nada nacionalista, insiste em denominar os que Washington identifica como inimigos de “ditadores”. O maior estadista da atualidade, Vladimir Putin, demonstrado por três horas de verdadeiras aulas aos jornalistas internacionais, durante a entrevista coletiva no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo (SPIEF), em 8 de junho de 2024, que nenhum dirigente se arriscou, mesmos nas mais favoráveis circunstâncias, só acolhe este epíteto depreciativo, mesmo quando submetido a eleições periódicas.


Claudia Sheinbaum sucede AMLO

Claudia Sheinbaum não pretende repetir López Obrador. Primeiro, por terem personalidades diferentes; segundo, porque os tempos não são os mesmos. Mas a linha política não mudará, pois Claudia também ajudou a constituir o Morena. O que mais significativo ocorreu nos seis anos de AMLO? A consolidação do mundo multipolar. O que a imprensa neoliberal busca esconder.

Em junho de 2024, Putin colocou a Coreia do Norte na imprensa internacional. A maior arma da comunicação é o silêncio, ignorar a existência e feitos dos inimigos. O mundo unipolar trabalha como no tempo da bipolaridade russo-estadunidense. Se não for para atacar Kim Jong Um – cujo avô, Kim Il Sung, foi a grande líder, libertador da península coreana dos ocupantes japoneses, levando os EUA à construção do fantoche sul-coreano e da zona desmilitarizada – nada é publicado sobre a Coreia do Norte.

O México sabe seus limites, mas não recua em seus projetos. Energia é sempre, e para qualquer país, um desafio. O México, no biênio 2022/2023, foi o quinto maior incorporador de reservas de óleo e gás natural do mundo. Recordemos que neste período a Guiana, nas Américas, e Uganda, na África, entram para o rol dos países petrolíferos.

Outra questão que ganha cada vez maior relevância é a água doce, a água potável. A carreira acadêmica de Claudia, antes de entrar na política, foi no segmento da engenharia de energia e integrou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Pode-se esperar avanço importante neste setor.

Também, conforme declarações da presidente eleita, pretende encaminhar emenda constitucional sobre igualdade de gênero, tema que deve ganhar também maior destaque na sua gestão.

Ter vizinho os EUA é ter constantemente a questão da segurança, pública e nacional, em pauta. E, como cientista, Claudia Sheinbaum sabe a importância do desenvolvimento científico e tecnológico para ter sucesso neste setor, cada vez mais dependente de recursos da informática.

Muitas questões de natureza cultural são colocadas como desafio, mas a compreensão da história do México, dos eventos que marcaram seu povo, o que está na própria formulação do Morena, reduzem a dificuldade dos desafios que a direita e a extrema-direita impuseram na Argentina, e ameaçam no Brasil.

Enfim, pelo que narramos nestes três artigos, acreditamos que o caro leitor do Monitor Mercantil pode confiar ter no México o exemplo bem sucedido do processo de independência e de soberania política. Não será surpresa seu ingresso na Iniciativa do Cinturão e Rota (Nova Rota da Seda) e na Organização para Cooperação de Xangai.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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