Especialista no setor de satélites, Israel Fernando Bayma avisa que “enfrentamos três riscos críticos: poluição orbital descontrolada, dependência de operadoras estrangeiras (como a Starlink, sujeita a leis dos EUA), e asfixia da indústria nacional”. Bayma explicou ao Monitor Mercantil o que está em jogo para a soberania, proteção de dados e tecnologia nacionais:
Em seu artigo “A urgência de uma adequada Política Nacional para Serviços de Satélite: riscos da poluição orbital e a necessidade de regulação”, você aponta uma falha crítica na governança espacial brasileira, a partir do recente aval da Anatel para a operação de mais 7,5 mil satélites da Starlink no Brasil aprovado pelo Conselho Diretor da Agência. Mesmo com variadas condicionantes, você alerta que autorização foi concedida sem uma política nacional clara para serviços via satélite. Gostaria que você explicasse: qual é a importância de uma Política Nacional para Serviços de Satélite?
Em primeiro lugar, sem essa política nacional, enfrentamos três riscos críticos: poluição orbital descontrolada; dependência de operadoras estrangeiras (como a Starlink, sujeita a leis dos EUA); e asfixia da indústria nacional.
Além disso, e não menos importante, a definição de política de telecomunicações é de competência do Executivo, conforme estabelecido nos artigos 21, inciso IX, e 22, inciso IV, da nossa Constituição. E é privativa da União legislar sobre telecomunicações e exploração desses serviços. A Lei Geral de Telecomunicações – a LGT – também estabelece que a União, nos termos das políticas estabelecidas pelos poderes Executivo e Legislativo, organiza a exploração dos serviços de telecomunicações. E o serviço de satélites é um serviço de telecomunicações.
Hoje, só temos um Regulamento Geral de Exploração de Satélites, aprovado por resolução da Anatel, o que não é suficiente. A própria agência reguladora, no ato normativo que aprovou a operação de mais 7,5 mil satélites da Starlink no Brasil, admite a falta de marco normativo atualizado para lidar adequadamente com o lixo espacial, a soberania digital e a concorrência desleal no mercado satelital brasileiro.
Sem regras claras, há risco de “lixão espacial” e de dependência exclusiva de operadoras estrangeiras, colocando em risco dados sensíveis.
Verifiquei que a Europa regula limites de constelações por operador e exige planos de descarte de satélites e taxas para mitigação de detritos. No caso de dados sensíveis, a França exige armazenamento local de dados críticos.
Por fim, posso dizer que esse vácuo é prejudicial à soberania do nosso país.
Você é bastante crítico a essa resolução. Quais os riscos para o país?
Como eu disse anteriormente, a ausência de uma Política Nacional compromete a sustentabilidade ambiental do espaço orbital, a soberania digital e a segurança das comunicações estratégicas do Brasil. Sem limitação de satélites, o Brasil pode transformar suas órbitas em áreas congestionadas e perigosas. Os dados de brasileiros operados por redes de empresas estrangeiras (como a Starlink) ficam sujeitos exclusivamente à legislação externa.
Além disso, sem regras igualitárias, as empresas nacionais – e aqui cito especificamente que a estatal Telebras ficará sufocada – não conseguem competir nesse setor. Por fim, não se pode depender exclusivamente de constelações estrangeiras para comunicações em áreas sensíveis, como na Amazônia, e até para uso como meio de comunicação das nossas forças de defesa e de fronteiras.
Cito, inclusive, as experiências de outros países: a França exige remoção de lixo espacial em até 25 anos após o fim da missão. O Reino Unido limita satélites por órbita. Outros países europeus adotam um seguro ambiental para operadores.
Aqui, a Anatel cobrou dos 7,5 mil satélites da Starlink apenas R$ 102,6 mil pelo direito de exploração – valor irrisório frente aos riscos envolvidos – e não estabeleceu qualquer exigência quanto à remoção de satélites desativados.
Qual seria a ação necessária do Ministério das Comunicações?
Recentemente, um decreto presidencial transferiu para o MCom a definição de diretrizes e da governança dos compromissos de conectividade, para atender escolas públicas, financiados por recursos do leilão de 5G. Até então, essa atribuição vinha sendo assumida pela Anatel.
Da mesma forma, creio que a autorização concedida pela Anatel para a Starlink foi prematura e arriscada. O Ministério das Comunicações (MCom) deveria dar precariedade à autorização do ato normativo da Anatel, até que se defina uma política nacional moderna e adequada para serviços satelitais.
Paralelamente, seria fundamental o Ministério abrir um amplo debate público com cientistas, entidades da sociedade civil e especialistas para estabelecer limites adequados de satélites por órbita, exigir planos de descarte sustentável e garantir efetiva soberania sobre os dados trafegados.
Além disso, a autorização dada à Starlink e novas autorizações a outras operadoras de satélites que atuam no Brasil deveriam estar vinculadas à realização de Análises de Impacto Regulatório (AIR) robustas, como chegou a ser sugerido, mas não implementado, pela própria Anatel.
Veja bem, temos um problema que precisa ser resolvido: o país precisa dominar as tecnologias de uso de serviços satelitais e desenvolvimento soberano para construção e lançamento de seus próprios satélites. Para isso, temos que dar à Telebras capacidade de se transformar em uma grande operadora de serviços de telecomunicações, pois a comunicação por satélites, como eu disse anteriormente, é um serviço de telecomunicações. Para isso, temos que ter uma política que promova o pleno desenvolvimento da indústria espacial nacional.
Você sugere que o Ministério e o Congresso Nacional trabalhem na criação de um Marco Legal para Serviços Orbitais, visto que o Regulamento Geral de Exploração de Satélites (RGSat) não é suficiente. Quais seriam as salvaguardas necessárias para o país e quais outras bases para esse Marco Legal?
A pressão exercida pela Starlink – que alegou estar “recusando clientes” sem os novos satélites – não pode servir de justificativa para negligência regulatória. Uma autorização precipitada como essa configura um risco estratégico para o país. O Congresso Nacional tem papel fundamental nesse processo, devendo promover debates e audiências públicas para auxiliar o Executivo na formulação de uma política pública adequada que assegure a soberania espacial brasileira.
A meu ver, cabe ao MCom liderar a criação urgente de um Marco Legal para Serviços de Comunicação Orbitais, alinhado às melhores práticas e diretrizes internacionais. Sem essa ação coordenada, o Brasil continuará refém de decisões apressadas, enquanto a comunidade internacional avança na proteção do espaço como bem comum da humanidade.
Face a expansão acelerada de operações satelitais e a utilização de constelações em órbita baixa (LEO) sem diretrizes claras, a soberania nacional está colocada em risco, assim como o controle dos dados e o meio ambiente orbital.
Inspirado nas melhores práticas internacionais, o MCom poderia propor ao Legislativo a criação de um Marco Legal para a exploração de serviços orbitais e proteção da soberania digital do Brasil, consolidando a competência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para regular e fiscalizar tais atividades, mediante alteração expressa da Lei Geral de Telecomunicações (a Lei 9.472, de 1997).
O arcabouço regulatório proposto deve ser moderno para estabelecer princípios e diretrizes para o uso sustentável do espaço orbital sob jurisdição brasileira; alterar a LGT para incluir expressamente os serviços orbitais no rol de atribuições regulatórias da Anatel; estimular o desenvolvimento da indústria espacial nacional e o fortalecimento da Telebras e seus projetos de satélites como o SGDC (Satélite Geoestacionário Brasileiro); e, acima de tudo, proteger a soberania digital e ambiental do Brasil.
O presidente Lula anunciou que quer ver com os chineses uma alternativa à Starlink. (Lula busca na China um rival para conter o avanço da Starlink no Brasil). Como você vê esta iniciativa?
Essa iniciativa é altamente positiva e não deve ser focada exclusivamente em encontrar alternativa a um ou outro operador satelital que opere no Brasil. Quanto mais concorrência tivermos no setor melhor para o país. Mas, acima de tudo, o Brasil deve ter operadores que atuem no país para garantir o controle soberano sobre os dados trafegados nas comunicações nacionais; a transferência de tecnologia nos contratos de serviços satelitais; a participação da Telebras na operação e integração terrestre; e a total independência regulatória frente a quaisquer operadoras estrangeiras.
Assim, parcerias com empresas chinesas como SpaceSail, que tem tecnologia LEO competitiva e já tem um acordo com Telebras, podem reduzir dependência de uma única operadora.
Como a Telebras pode atuar no setor de telecomunicações?
Em 1997, tentaram extinguir a Telebras. Não conseguiram. Ela foi reativada pelos idos de 2010. No governo passado, ficou paralisada para ser privatizada. Agora, ela deve ocupar um importante papel no setor de telecomunicações no país.
Por isso, acredito que é fundamental ter a Telebras como ator-chave nas comunicações satelitais no Brasil. O satélite SGDC-1, operado pela estatal, já opera em sua capacidade máxima, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. Assim, o SGDC-2 deve ser priorizado, com parcerias estratégicas e não exclusivas.
Acredito que a Telebras pode desempenhar um papel estratégico como alternativa concreta na oferta de serviços de Internet via satélite na Amazônia, aproveitando parcerias internacionais e sua infraestrutura existente.
Inclusive, neste sentido, em novembro de 2024, a estatal firmou um memorando de entendimento com a SpaceSail com o objetivo de fornecer Internet de alta velocidade no Brasil.
Há uma expectativa que a SpaceSail inicie suas operações no país em 2026, oferecendo cobertura especialmente em regiões remotas como a Amazônia. Embora ainda não tenha nenhum satélite dessa parceria formalizado junto à Anatel, ele representa uma oportunidade concreta para diversificar a oferta de conectividade, reduzindo a dependência de soluções estrangeiras e promovendo a inclusão digital nas áreas mais isoladas do território nacional.
Nesse ambiente global de disputas comerciais, tenho certeza que seria também muito importante o Brasil buscar cooperação com outros países, articulando com os nossos vizinhos da América Latina, inclusive no âmbito do Mercosul, para construção de uma agenda regional que evite uma “colonização orbital” por quaisquer outras nações.
Por Andrea Penna, especial para o Monitor