Seguros x bets: quem aposta pensando no futuro?

Milhões de brasileiros são seduzidos diariamente pela jogatina online, enquanto vivem à margem do seguro e sem educação financeira. Por Carlos Alberto Pacheco

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Jovem faz aposta no celular (Freepik)

Conforme relato do economista e escritor francês Anatole Weber, no século 19, o criador da primeira sociedade de capitalização no mundo teria sido Paul Verger, diretor de uma cooperativa de mineiros na França. Na época, tinha um grande objetivo: o de proporcionar auxílio financeiro por meio de um fundo de poupança comum. O título de capitalização criado por ele era uma espécie de poupança monetária programada, que se consolidava por meio de um atrativo dado em forma de sorteio.

Baseada no princípio do mutualismo, o sistema formou uma associação de 250 membros. Para a constituição de um fundo comum, estimava-se a contribuição de 10 centavos, por semana, de seus colaboradores. O montante arrecadado era distribuído em forma de sorteios realizados em datas comemorativas. O contemplado teria o direito de resgatar antecipadamente o valor que seria poupado ao final dos pagamentos. O mutualismo impregnava sua cultura entre os participantes.

Dois séculos depois, essa consciência está longe de se estabelecer em países como o Brasil. O mercado segurador enfrenta um inimigo indigesto: as casas de apostas que prometem dinheiro “rápido e fácil”. Vejamos esse caso. Antônia (nome fictício), moradora no bairro de Guaianases, periferia de São Paulo, sacou R$ 5 mil da aposentadoria da mãe e apostou em uma “bet”. Perdeu tudo e ainda pegou dinheiro emprestado para pagar as contas da casa.

Gleisson Rubin (foto divulgação MAG)
Rubin: crescimento das casas de apostas levanta um alerta para o mercado segurador (foto divulgação MAG)

O exemplo acima ilustra o fato de que não aprendemos com a lição dos mineiros franceses do século 19. “Será que o nosso mercado coloca de forma clara para a sociedade brasileira a necessidade de proteção? Eu me pergunto por que as pessoas apostam em loterias ou casas de apostas diante da possibilidade de serem contempladas com um suposto prêmio. Ao contrário: deveriam reservar parte do recurso num planejamento financeiro, cuja contemplação futura é certa”, questionou o corretor de seguros e especialista em produtos de vida, Rogério Araújo. Nas apostas, o cidadão conta com a sorte apenas. Mas quem não tem reserva para o seu dia a dia, sofre mais.

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“É inegável que o crescimento das casas de apostas, as populares bets, levanta um alerta para o mercado segurador. A promessa de ganhos rápidos e a facilidade de acesso podem estar comprometendo recursos que poderiam ser direcionados para a proteção do futuro, como seguros de vida e planos de previdência complementar”, adverte Gleisson Rubin, diretor do Instituto de Longevidade MAG. Enquanto isso, os números das apostas crescem a olhos vistos, impulsionados pelo marketing agressivo veiculado nas redes sociais, emissoras de TV e por influenciadores digitais.

O consultor de mercado da Rosen Nebula, Gustavo Rosa, apresentou um dado impressionante do crescimento das bets em evento recente: entre junho de 2023 até junho deste ano, os brasileiros gastaram cerca de R$ 68 bilhões em jogos online. Neste rol, destacam-se os que estão mergulhados em situação econômica vulnerável. Querem resolver problemas imediatos, mas fracassam e se aprofundam num ciclo perverso de endividamento e inadimplência.

Rosa traz outro dado estarrecedor. “Um estudo da Serasa aponta que 46% dos inadimplentes já apostaram pelo menos uma vez, e 44% deles o fizeram na esperança de quitar dívidas. Isso mostra que, ao invés de buscar uma renegociação estruturada da dívida ou uma solução financeira mais planejada, muitos recorrem às apostas, uma alternativa de risco elevado, como forma de resolver suas pendências”. A questão, conteúdo, merece um olhar mais amplo.

Baixa formação de poupança

“Em 2023, a taxa de poupança interna do Brasil em relação ao PIB, conforme dados do Banco Mundial, ficou em torno de 16%, significativamente abaixo da média global de cerca de 27%. Ao observamos a América Latina, o cenário não é muito diferente: o Brasil está abaixo da média regional, de 17%, e dista ainda mais de países como o México, cuja poupança corresponde a 20% do PIB”, ressalta o consultor. Em relação aos países dos Brics, o abismo é ainda maior. Na China, a taxa de poupança alcança fantásticos 46%, enquanto na Índia é de 31% e na Rússia, 30%. A única exceção no grupo é a África do Sul, com uma taxa de poupança de apenas 14%.

De acordo com Rosa, a baixa formação de poupança no Brasil influencia negativamente na saúde financeira das famílias. “Segundo dados do CNC, cerca de 76,9% das famílias brasileiras estão endividadas, utilizando crédito para complementar pagamento das despesas mensais. Além disso, cerca de 29,3% enfrenta a inadimplência, sem conseguir honrar suas dívidas integralmente”, alerta.

Para o corretor Araújo, é preciso intensificar o diálogo com a sociedade sobre os benefícios de esquemas de proteção que garanta tranquilidade no longo prazo. “Levar a cultura do seguro de uma forma didática”, propõe. E complementa: “As pessoas não devem confundir entretenimento, aposta, com investimento”. É verdade. Temas como formação de poupança e educação financeira sempre estiveram na pauta das principais instituições ligadas ao setor.

Boris Ber (foto divulgação Sincor-SP)
Para Boris Ber, planejamento financeiro é fundamental para o cidadão e sua família (foto divulgação Sincor-SP)

A única entidade a falar sobre o assunto foi o Sindicato dos Corretores de Seguros do Estado de São Paulo (Sincor-SP). “Esse é um tema que não havia pensado a respeito”, confessa o presidente Boris Ber. Ele é crítico no que chama de “vício do jogo” – o desespero e a falta de dinheiro produzem uma compulsão. O indivíduo, então, busca o “milagre” de ser sorteado. “Ele não prevê o futuro, joga para ter retorno rápido e muitas vezes se frustra”, reforça Boris. O dirigente coloca em xeque a transparência de algumas bets, a exemplo de episódios recentes quando houve manipulação de resultados em jogos de futebol.

Na opinião de Boris, o mercado precisa opinar em face desta grave situação. “O planejamento financeiro é fundamental para o cidadão aprender a se prevenir ante a um problema que venha a afetar a sua vida e da família. E parece que essas informações não chegam até ele. O seguro oferece estas oportunidades de proteção. E, infelizmente, não é isso que estamos assistindo”, destaca o presidente do Sincor-SP.

Disciplinador financeiro

Gustavo Rosa (foto divulgação Rosen Nebula)
Rosa: baixa formação de poupança no Brasil influencia negativamente na saúde financeira das pessoas (foto divulgação Rosen Nebula)

Na análise do economista Francisco Galiza, a compulsão aos jogos é um problema de dimensões globais. No caso do Brasil, as apostas concorrem com produtos de capitalização. O mais grave é o cidadão perder de forma sucessiva. E este risco recai, na maioria das vezes, nas faixas de baixa renda, atraída pelas facilidades de apostar pelo celular, por exemplo.

“Este problema possui uma dimensão muito mais abrangente do que o próprio mercado segurador”, afirma Galiza. Na sua visão, o governo, ao regulamentar algumas destas bets, aumenta a sua arrecadação de impostos. Por outro lado, irá gastar com os atendimentos no SUS porque a compulsão à jogatina gera doenças. “O jogo pode estimular o sistema de recompensa do nosso cérebro, de forma semelhante ao que ocorre com o uso de drogas e álcool, levando ao vício”, explica a psiquiatra Maria Fernanda Caliani.

No Brasil, há um disciplinador – na análise de Gustavo Rosa – que pode ajudar muito a mudar a realidade das famílias atendendo as suas demandas de juntar dinheiro e concorrer a sorteios. Esse instrumento chama-se título de capitalização. “Este é um mercado dos mais maduros do mundo, se não o mais maduro. Esse ano já temos mais de R$ 32 bilhões em reservas matemáticas que contribuem a melhorar o percentual de poupança do país e se tornam uma das primeiras linhas de defesa das pessoas frente às dificuldades financeiras”, reitera.

Nos cálculos do consultor, existem 152 milhões de clientes bancarizados (87,7% da população adulta). Esse contingente pode ser estimulado a adotar esse disciplinador financeiro em larga escala, sobretudo quem está vinculado a bancos digitais, além de outros canais como corretores, cooperativas de crédito, correspondentes bancários e grandes varejistas. “É preciso que estes canais estejam dispostos a ajudar a resolver esse grave problema social, ou seja, a nossa falta de cultura de planejamento para o futuro”, adverte.

Gleisson Rubin, da MAG, defende a implementação de programas de educação financeira desde a infância, “ensinar as pessoas a lidar com o dinheiro de forma responsável, a planejar seus objetivos de longo prazo e a entender os benefícios de proteger seu futuro com seguros e investimentos”. E esse é o antídoto perfeito a quem vive anestesiado sob a tentação do jogo. Quem se conscientizar, dará um passo adiante para se livrar do vício.

Por Carlos Alberto Pacheco, especial para o Monitor

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