Sentença de Arouck Gemaque é aula de História e de Direito

724
Silvio César Arouck Gemaque (foto divulgação JFSP)
Silvio César Arouck Gemaque (foto divulgação JFSP)

Silvio César Arouck Gemaque é um dos mais conceituados e reconhecidos magistrados do Estado de São Paulo e acaba de prolatar uma sentença volumosa de quase 150 páginas, com verdadeiras lições de Direito e que ficará nos anais da justiça brasileira, pelo seu alcance social e pela importância jurídica e histórica.

Trata-se de denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra (“Dr. Tibiriçá”), Alcides Singillo e Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha” à época dos fatos, brasileiro, delegado de Polícia Civil aposentado, pela suposta prática do crime previsto no artigo 148, § 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal.

Ao analisar os fatos, em um profundo e meticuloso trabalho de pesquisa e debruçado sobre códigos e depoimentos, o juiz federal titular Silvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, proferiu uma longa sentença, que, pela sua importância e abrangência, deve servir como objeto de estudo, análise e discussões para os acadêmicos dos cursos de Direito de todo o país. Tais fatos ocorreram nos porões do Dops e DOI-Codi durante a ditadura militar (1964–1985).

Narra a denúncia, que desde 13 de junho de 1971 até a presente data, na capital do Estado de São Paulo, os acusados privaram ilegalmente de sua liberdade a vítima Edgar de Aquino Duarte (Edgar Duarte de Aquino, Edgar Duarte ou Ivan Marques Lemos Lemos), mediante sequestro, cometido no contexto de ataque estatal sistemático e generalizado contra a população, tendo eles pleno conhecimento dessas circunstâncias.

Espaço Publicitáriocnseg

A denúncia narra, outrossim, que a vítima, em razão dos maus-tratos provocados ilegalmente pelos denunciados, padeceu de gravíssimo sofrimento físico e moral em razão do longuíssimo período do sequestro (mais de 40 anos); das agressões físicas e psicológicas a que foi submetido; e do regime de incomunicabilidade a ele imposto, uma vez que desde meados de 1973, não foi permitido à vítima contatar-se com parentes e amigos.

Ainda conforme a inicial acusatória, a materialidade do fato criminoso está devidamente demonstrada nos autos, mormente pela privação ilegal da liberdade da vítima Edgar de Aquino Duarte, mediante sequestro e sua manutenção clandestina, a partir do dia 13 de junho de 1971, nas dependências dos dois órgãos de repressão política do Estado ditatorial em São Paulo, a saber o DOI-Codi e o Dops, locais onde Edgar foi visto pelos demais presos políticos da época pela última vez.

Na data de início da execução do delito, o acusado Carlos Alberto Augusto era investigador de polícia lotado no Dops e integrante da equipe do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Nesse contexto, em data incerta, entre os dias 29 de maio e 4 de junho de 1971, o acusado teria detido José Anselmo dos Santos (“Cabo Anselmo”) no apartamento da vítima Edgar de Aquino Duarte. Poucos dias depois, em 13 de junho do mesmo ano, o acusado, agindo em concurso com o investigador Henrique Perrone e com outros dois agentes da equipe do delegado Fleury, ainda não identificados, deteve também a vítima Edgar para averiguações.

Nos termos da denúncia, imputa-se ao acusado Carlos Alberto Augusto a participação na captura de Edgar de Aquino Duarte em 13 de junho de 1971, ato que integra a conduta tipificada no art. 148 do Código Penal. Imputa-se ao acusado, também, a participação na privação permanente da liberdade da vítima, inicialmente nas dependências do DOI-Codi, e após, nas dependências do Dops, e, por fim, no presente, em local ignorado. A denúncia foi recebida em 23 de outubro de 2012.

É um longo e arrastado processo e que teve como testemunhas o ex-presidente da República Michel Temer e os ex-governadores de São Paulo José Maria Marin e Paulo Salim Maluf, dentre outros “figurões” da política.

A defesa do acusado Carlos Ustra desistiu da oitiva das testemunhas do general de exército Adhemar da Costa Machado Filho e do general de brigada Carlos Sardinha. Em 2015, em razão do falecimento do reclamante, o acusado Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi proferida sentença de extinção da punibilidade.

Ao longo de toda a belíssima sentença, o leitor vai percorrendo os chamados Anos de Chumbo, revivendo momentos dos mais dolorosos e chocantes da vida nacional que, em decorrência desse período ditatorial, perdeu liberdades constitucionais e foi duramente violentada por crimes dos mais bárbaros, vários dos quais levaram à morte de muitos brasileiros ou ao exílio. Além de uma sentença histórica e da mais valiosa, são narradas, no decorrer da exposição de motivos que levaram às conclusões, cenas que atordoaram e amedrontaram durante 21 anos os brasileiros.

Como análise do caso concreto, é forçoso reconhecer-se ainda que, uma vez definidos como crimes contra a humanidade, aplica-se o primado da imprescritibilidade de tais fatos típicos, bem como a extensão da dogmática jurídica para o crime em espécie. Ademais, tendo em vista a robustez dos elementos probatórios citados, não há dúvida do envolvimento do réu nos fatos mesmo em se considerando-o como crime comum. Por essa razão, e diante da robustez de provas, só restou ao juiz Arouck Gemaque deliberar sobre a condenação penal, por ser uma medida que se impunha.

Cabe salientar que o acusado é primário e não ostenta antecedentes criminais; no entanto, algumas circunstâncias judiciais militam em seu desfavor. Nessa esteira, o juiz Arouck Gemaque verificou que o fato foi praticado em um contexto de graves violações aos direitos humanos, denotando a conduta do acusado uma acentuada reprovabilidade social, diante de tudo o que restou consignado na sentença, reprovabilidade essa que destoa da generalidade dos casos da mesma espécie, razão pela qual exasperou a pena-base, por essa circunstância.

Além disso, observou Arouck Gemaque, por todo o exposto na sentença, que o réu possui personalidade voltada para a prática de crimes idênticos e similares ao descrito na denúncia, em um contexto de perseguição generalizada de conteúdo político, razão pela qual também exasperou a pena-base, sob esse fundamento, em três doze avos, não lhe sendo desfavoráveis as demais circunstâncias do artigo 59, sob pena de configuração de bis in idem, fixando-a em dois anos e 6 seis meses de reclusão.

Mais adiante, o juiz Arouck Gemaque observou a presença da agravante da alínea “g” do inciso II, do art. 61 do CP “com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão”, nos termos do explanado acima na fundamentação do decisum, não havendo outras circunstâncias agravantes como sustentado pela acusação. Não há provas para a alínea “d”, nem para a “i”.

Com efeito, muito embora haja provas do envolvimento do réu na prisão, não há que tenha se envolvido na tortura da vítima, nem que ela estivesse sob sua imediata proteção, já que atuava na equipe do delegado Fleury. Ficaram, pois, afastados os pedidos de agravamentos além desse ora reconhecido. Não há circunstância atenuante da confissão, mas há a do inciso I do art. 65 do CP, já que maior de 70 anos na data da sentença.

Diante de tantas e robustas provas, relatórios, investigações, oitiva de testemunhas e pesquisas nos arquivos do Estado de São Paulo Posto, o juiz Arouck Gemaque julgou procedente a ação penal para condenar Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha” à época dos fatos, brasileiro, delegado de Polícia Civil aposentado, pela suposta prática do crime previsto no artigo 148, privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado, § 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal, à pena de 2 anos e 11 meses de reclusão, em regime inicial, semiaberto.

Silvio César Arouck Gemaque foi promotor de Justiça em São Paulo e também ostenta uma exitosa carreira como professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito, em algumas universidades, além de ser constantemente convidado para participar de congressos, seminários e simpósios. É doutor em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; mestre em Direito, pela Universidade Metropolitana de Santos/SP; além de Bacharel em Letras, pela Universidade de São Paulo/SP.

Arouck Gemaque possui diversos livros publicados na área jurídica, além de outros de poemas e de ficção. No momento, está fazendo sua formação em Psicanálise, no Centro de Formação em Psicanálise.

 

Paulo Alonso, advogado e jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui