Silvio Tendler e a hora da saudade

Silvio Tendler, o “cineasta dos sonhos interrompidos”, e sua marcante trajetória no cinema brasileiro.

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Silvio no Dep. de Comunicação Social da PUC/RJ – Anos 1980. Foto: Antônio de Albuquerque/Núcleo de Memória da PUC-Rio.
Silvio no Dep. de Comunicação Social da PUC/RJ – Anos 1980. Foto: Antônio de Albuquerque/Núcleo de Memória da PUC-Rio.

O cineasta e documentarista Silvio Tendler, um dos maiores do Brasil, se despediu dos sets de gravação recentemente. Como de praxe, as academias dedicam ao confrade morto uma “sessão da saudade”. A Academia Carioca de Letras, da qual o artista era titular, realizou, na última quinta-feira, em seu expediente nobre e com a presença de uma legião de amigos e familiares — incluindo a mulher, Fabiana, e a filha, Ana Rosa — uma sessão denominada A Hora da Saudade.

Ao falecer, aos 75 anos, Silvio Tendler — também professor (lecionou na PUC-Rio por décadas) e historiador — ficou conhecido como o “cineasta dos vencidos” ou “cineasta dos sonhos interrompidos”, por retratar em sua obra figuras da história brasileira cujos projetos políticos foram interrompidos, como João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Marighella. Com mais de 70 filmes e diversas séries em sua filmografia, é um dos documentaristas de maior público do cinema brasileiro, sendo o diretor de três das maiores bilheterias do gênero no país: O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981), Jango (1984) e Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980).

A trajetória de Tendler começou no movimento cineclubista do Rio de Janeiro, em meados da década de 1960. Em 1968, tornou-se presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro e realizou seu primeiro documentário, sobre a Revolta da Chibata, após conhecer pessoalmente o marinheiro João Cândido. Devido à repressão da ditadura militar, os negativos originais do filme foram destruídos.

Tendler mudou-se para o Chile em 1970, entusiasmado com a vitória de Salvador Allende. Lá, trabalhou em projetos culturais do governo. Em 1972, mudou-se para a França para aprofundar seus estudos, onde se tornou parte de um círculo de documentaristas influentes. Ligado a nomes como Chris Marker e Jean Rouch, integrou o coletivo que realizou o filme La Spirale (1975), uma análise do golpe de Estado no Chile. Em Paris, formou-se em História pela Universidade Paris VII, onde trabalhou com o historiador Pierre Vidal-Naquet, e concluiu seu mestrado no seminário “Cinema e História”, de Marc Ferro, com uma tese sobre Joris Ivens.

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Ao retornar ao Brasil, em 1976, Tendler começou a produzir seus filmes mais icônicos e de grande projeção. Em plena transição da ditadura militar (1964–1985) para a democracia, seus documentários resgataram a memória de um Brasil democrático e desenvolvimentista.

Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), com 800 mil espectadores, e Jango (1984), com 1 milhão, não apenas foram sucessos de bilheteria, mas também cumpriram um papel político crucial ao contrapor o otimismo da era pré-1964 à sisudez do regime militar. Anos mais tarde, ele completaria o que chamou de “Trilogia Presidencial” com Tancredo: A Travessia (2011).

Em 1981, dirigiu o sucesso de bilheteria O Mundo Mágico dos Trapalhões.

Fiel a uma perspectiva de esquerda, Tendler desenvolveu um estilo de “documentarista autor”, em que seus filmes eram construídos em torno de suas convicções e interpretações da história. Sua obra abrangeu figuras como Josué de Castro, Milton Santos e Carlos Marighella. Um de seus projetos mais ambiciosos, Utopia e Barbárie (2009), levou quase 20 anos para ser concluído e apresenta um afresco da segunda metade do século 20, com depoimentos de intelectuais como Augusto Boal e Susan Sontag.

Entre 2011 e 2014, dirigiu a Trilogia da Terra, uma série de documentários que abordam a questão agrária e os perigos dos agrotóxicos.

Teve também forte atuação política e institucional, tendo sido secretário de Cultura e Esporte do Distrito Federal no governo Cristovam Buarque e coordenador de audiovisual na Unesco na década de 1990.

Por mais de uma década, Silvio Tendler enfrentou as complicações de uma neuropatia diabética. Em 2011, a doença o deixou tetraplégico, mas, após um longo processo de recuperação, ele retomou os movimentos e a capacidade de filmar. Esse período de sua vida foi registrado no documentário A Arte do Renascimento (2015), de Noilton Nunes.

No início deste ano, foi condecorado pelo presidente da República com a Ordem do Mérito Nacional, durante a reabertura do antigo Palácio Capanema.

Silvio sempre foi um amigo querido e generoso; franco e de bem com a vida; genial e versátil. Encarou a doença com resiliência e não a deixou vencer — tanto é que continuou na labuta. Um mês antes de sua partida, estivemos juntos, em seu belo apartamento da Avenida Atlântica, e lá passamos um fim de tarde dos mais prazerosos e memoráveis. Falamos sobre os rumos da política brasileira, sobre seus filmes — em especial Jango e JK — e sobre as dificuldades que a cultura enfrentou no governo passado, quando foi desmantelada. Risos e sorrisos. Projetos e planos, inclusive um que envolvia o ex-governador Leonel Brizola.

Na Academia Carioca de Letras, sempre foi festejado por todos os confrades e confreiras, tendo sido, à época, eleito por aclamação. Sua forma descontraída de ser, sua rica experiência de vida e, sobretudo, o gosto pela sétima arte encantavam a todos e todas.

O mundo do cinema perde um dos seus maiores e melhores cineastas; a Academia Carioca de Letras deixa de contar com a luz de um dos seus mais frequentes acadêmicos; e eu perco um grande e querido amigo — sensível, humano e espetacular.

Salve, Silvio Tendler!

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