O endividamento das famílias no Brasil é uma chaga aberta que atinge a nossa sociedade e que arrola cada vez mais a classe média ao grupo dos inadimplentes. Tal circunstância desastrosa faz parte da história da financeirização do país.
O capital usurário, que é o capital de empréstimo, é o portador dos juros. Os dados do Banco Central mostram que nunca esse capital teve tanta rentabilidade. Somente no período pandêmico, em 2020 e 2021, estivemos tão endividados e com as parcelas das nossas rendas tão comprometidas com o pagamento de juros e de amortização de dívidas que espocam entre os que compõem a base da nossa pirâmide social.
Compromete-se da verba familiar algo em torno de 25% a 30%. Mas a pergunta-chave é: por que, cada vez mais, a sociedade apresenta tais circunstâncias? Os pobres e a classe média vivem o lado mais brutal da financeirização que ocorre por aqui. A motivação disso está atrelada à dinâmica financeirizada da sociedade brasileira, que é tocada pelas grandes corporações financeiras, as quais passam a ter uma ascendência sobre todas as demais frações do capital.
Estabelece-se um padrão de acumulação no qual os juros se tornam fonte de renda por meio dos canais financeiros, muito mais do que pelos canais da indústria, da produção e do comércio de mercadorias. A financeirização é a hipertrofia do setor financeiro em relação ao setor real. E isso faz com que haja uma enorme transferência de renda de toda a sociedade para esse segmento. Isso promove um aumento gigantesco da desigualdade de renda e uma tendência à estagnação salarial.
O crédito se torna, portanto, uma violência expropriadora das rendas das famílias e das empresas, porque os juros são anormalmente elevados e colocam em risco a sobrevivência dos cidadãos, ameaçando o próprio esforço produtivo das empresas.
A política macroeconômica repete o mantra da austeridade fiscal, do ajuste permanente das taxas de juros e das metas inflacionárias. Outra perda é o mercado de trabalho, que está desregulamentado, precarizado, em que os trabalhadores são vulnerabilizados, sem direitos sociais, vivendo ansiosamente porque há uma alta rotatividade nas áreas de atuação, e os salários, cada vez mais, têm maior perda do poder de compra.
Então, onde é que o crédito entra? Ele vai funcionar como um mecanismo compensatório da expropriação dos direitos sociais, do achatamento e da degradação dos serviços ofertados pelo Estado. Ou seja, funcionará como uma transferência de renda.
O crédito substitui um serviço público gratuito que complementava o estipêndio mensal. Isso fez com que as famílias fossem forçadas a consumir planos de saúde, usufruir de empréstimos consignados, pagar por educação privada, recorrer a seguros-desemprego em bancos. Busca-se, portanto, um mercado que ofereça produtos e serviços a preços elevadíssimos e que tome o lugar da assistência estatal.
Entretanto, o Estado faz ajuste fiscal para abrir esse caminho para o capital privado. E é por isso que temos, hoje, grandes fundos de investimento administrando a infraestrutura econômica e social do país.
Esse movimento acarreta um endividamento em massa. Para compensar a perda salarial e de direitos basilares, há uma reestruturação do mercado de crédito para atender a essa carência de renda. E há uma reestruturação do Estado, que vai operar de forma consistente com a lógica do mercado financeiro, moldando ativamente o endividamento e a financeirização do cotidiano das famílias e do pequeno e médio empresário.
O fato de que hoje nós temos uma estrutura produtiva que se concentra em commodities alimentícias, minerais e energéticas contribui para manter o status quo vigente. O fato de termos passado por uma desindustrialização na ditadura e, depois, no governo FHC; o fato de termos um crescimento acelerado do setor de serviços e uma hipertrofia do setor financeiro — todos esses fatores, juntos, amealhados, geram um baixíssimo dinamismo econômico.
Além disso, há um processo de desassalariamento, porque proliferam trabalhadores que atuam por conta própria, os quais, muitas vezes, são pejotizados e uberizados. Portanto, uma massa de empobrecidos que vai se aglomerando nas grandes cidades sem perspectivas de mobilidade social ascendente. É muito provável que tais pessoas não tenham renda suficiente para cobrir as suas necessidades básicas.
Fernando Lamounier, educador financeiro e sócio executivo da Multimarcas Consórcios