Seleção de crianças baseada no sexo é uma realidade a ser combatida
Estudava na Inglaterra em 1999 quando minha esposa ficou grávida de nosso primeiro filho. Felizes, devoramos o livro O que esperar quando você está esperando e passamos a frequentar o centro médico mais próximo de nossa casa. Ao indagarmos a doutora se no exame de ultrassonografia poderíamos saber o sexo da criança, respondeu negativamente. No caso, a impossibilidade não era técnica, mas decorrente de uma política pública. Explicou-nos que havia pessoas pertencentes a culturas que preferem filhos homens e, quando descobriam que o feto era do sexo feminino, partiam para o aborto. O sistema de saúde inglês, considerando esse fato, teve que determinar se essa informação sobre o bebê seria partilhada ou negada. Escolheu a segunda opção.
Com efeito, a seleção de crianças baseada no sexo é uma realidade. O avanço tecnológico permitiu determiná-lo na concepção ou descobri-lo durante a gestação, mas já existia uma mortandade dirigida às meninas no pós-parto ou então eram simplesmente negligenciadas, não recebendo os mesmos cuidados dispensados aos meninos.
Essa mortalidade atribuída à negligência ou outras formas de seleção de sexo pós-natal ainda persiste. O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em estudo sobre a morte de meninas com menos de 5 anos de idade, indica que, no grupo de países analisados, a Índia ostentava a mais alta taxa (11,7%), considerado o ano de 2012.
Técnicas de fertilização que determinam o sexo e também exames que permitem sabê-lo durante a gravidez são peças fundamentais para se entender a disparidade de nascimentos de meninas e meninos que é verificada em alguns lugares. O UNFPA aponta que é biologicamente esperado o nascimento de 102 a 106 meninos para cada 100 meninas. A Índia, no período de 2015–2017, apresentou a média de 111,6 meninos para 100 meninas. Portanto, números que denotam práticas de seleção por sexo, a privilegiar os meninos.
A China é outro país que vive esse desequilíbrio, e um dos motivos para a preferência pelo menino decorria da política do filho único, que perdurou de 1980 a 2015, juntamente com a expectativa de que o homem estaria mais apto do que a mulher para cuidar dos pais na velhice. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de 2015–2017, a média de nascimentos na China foi de 112,9 meninos para 100 meninas. Logo, números ainda mais contundentes que os encontrados na Índia no mesmo intervalo.
O UNFPA assinala que tais práticas de seletividade representam na atualidade o “desaparecimento” de aproximadamente 140 milhões de meninas e mulheres, sendo que a liderança é exatamente dos dois países acima referidos, Índia e China. Aliás, liderança, mas não exclusividade.
A preferência com relação ao sexo da criança é uma forma de discriminação de gênero. Com o objetivo de combatê-la, organizações internacionais têm trabalhado com diversos países visando à conscientização de suas populações, de maneira que a igualdade se realize desde antes do nascimento, a permitir que as meninas sejam tão bem-vindas quanto os meninos.
Wagner Cinelli de Paula Freitas é desembargador do TJRJ e autor dos livros Sobre ela: uma história de violência e Metendo a colher.