A grande dificuldade humana para aprender qualquer coisa nova é emocional. Afinal, o que aprendemos nos foi transmitido por pessoas que amamos, pais e professores, e depois repetido à exaustão pelos jornais e telejornais, nos filmes e nas músicas, também por pessoas que aprendemos a confiar. Desse modo, a mentira que nos engana, explora e humilha adquire o caráter de ‘sagrado’, de algo que sequer admitimos que alguém duvide sem despertar nossa ira e indignação. Esse é o grande obstáculo ao conhecimento humano: nosso medo da verdade e do autoconhecimento.
“Os brasileiros foram feitos de tolos e mandados às ruas por uma imprensa venal que prometia a redenção nacional. A ressaca foi a maior rapinagem e o maior saque das riquezas e do futuro brasileiro de que se tem notícia. Tudo em nome do combate à corrupção e pela defesa da moralidade”.
“A elite brasileira, a elite de verdade que é a elite do dinheiro, que manda no mercado e que ‘compra’ as outras elites que lhe são subalternas, criou o ‘bode expiatório’ da corrupção só da política para desviar a atenção de sua corrupção disfarçada em legalidade. Toda a sociedade tomou doses diárias desse veneno destilado pela mídia, pelas escolas e pela universidade e viu, imbecilizada, como não podia deixar de ser, uma meia dúzia de estrangeiros e de seus capangas brasileiros tomarem seu petróleo, sua água, suas terras e todos os recursos para um futuro viável para nação. Roubaram tudo e nos deixaram pobres. Tudo em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo bem do povo brasileiro” (Jessé Souza, O engodo do combate à corrupção: ou como imbecilizar pessoas que nasceram inteligentes?, 2018).
O golpe de março de 1964, planejado e realizado com organizações e pessoas no Brasil – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) – e nos Estados Unidos da América (EUA) – Departamento de Estado e Agência Central de Inteligência (CIA) –, objetivava destruir a Era Vargas, mas precisou contar com os tenentes da década de 1920, que aplicaram naqueles entreguistas o golpe no golpe, em 1967.
O período dos governos militares no Brasil pode ser dividido em quatro momentos: o da proclamação da República (1889-1894), o impulsionado pelos EUA (1964-1967), o conduzido pelos tenentistas conservadores de 1920 (1967-1979) e o da transição e subordinação do governo brasileiro para o domínio das finanças apátridas (1979-1990). Este último também faz a transição para os governos civis.
Não se deve, no entanto, imputar aos militares brasileiros o proselitismo golpista. Com a República, este setor da sociedade imbui-se do poder moderador que fora preservado para o Imperador.
George Simmel (1858-1918) entende haver um homem geral, não singularizado ou diferenciado e que se deve libertá-lo de todas as influências. Porém estes desvios históricos surgem de culturas díspares, como ocorreu no início da República, e que se perpetuou na forma do empoderamento da “disciplina”, o mais relevante comportamento entre os militares.
Pierre Bourdieu, em seu curso no Collège de France (1989-1992) “Sobre o Estado”, descreve a respeito da ideia do mandatário (Lição de 1 de fevereiro de 1990): “Pela sua própria existência, a comissão coloca o problema daqueles que a nomeiam… A questão é saber quem comissiona os membros de uma comissão. De quem eles são mandatários? Será que uma parte da ação deles não servirá para teatralizar a origem do mandato, para fazer crer na existência de um mandato que não seria autoproclamado?… A pergunta que gostaria de vos fazer é a seguinte: de quem o mandatário é porta-voz?… No fundo, todo o trabalho que faço perante vós consiste em regredir para além do Estado. O que é essa realidade em nome da qual atuam aqueles falam ex officio? Qual é a realidade em nome da qual aqueles que têm um officium falam em nome do Estado?”. Em suma: quem atribuiu aos militares um poder intervencionista que nada relaciona à defesa da pátria?
Manoel Bomfim (O Brasil Nação Realidade da Soberania Brasileira, 1931) escreveu:
O povo é ignaro, mas o instinto de progresso bem lhe mostra que o infalível processo de soerguimento está na educação, e ele aceita melhorá-la, tanto quanto lhe permitem os meios que lhe são dados. Apesar disso, o Brasil continua a ser o país de analfabetos e impreparados, com média humana mais baixa do que a de qualquer dos povos chegados à civilização.
Sem dúvida o conhecimento adquirido nos Colégios Militares e nas Academias Militares trouxe uma distinção na “ignara” sociedade brasileira. Porém esta vem se desfazendo desde os primórdios da Nova República, com a assunção do poder financeiro.
O neoliberalismo financeiro domina o Brasil
O período dos governos dos tenentes de 1920, agora generais: Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel, foi denominado “Milagre Brasileiro”, pelas altas taxas de crescimento econômico. De 1968 a 1973, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu cerca de 11,1% ao ano. Em 1973, o PIB atingiu o pico de crescimento, com a taxa alcançando 14% naquele ano. A partir de 1974, este crescimento começa a desacelerar, embora apresentasse ainda crescimento expressivo, com taxas de 8,15% em 1974, 5,1% em 1975, 10,2% em 1976, 4,9% em 1977, 4,9% em 1978 e 6,8% em 1979.
Porém mais importante do que estes crescimentos foram os investimentos realizados, na criação do Programa Nuclear Brasileiro (1972), na Construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu (1975), na ida para o mar pela Petrobrás na busca de petróleo a partir de 1968, em projetos de Integração Econômica do Brasil, visando primordialmente a Região Norte: Rodovia Transamazônica, Projeto Radambrasil e Zona Franca de Manaus. Também projetos sociais, como de infraestrutura urbana e de habitação em diversas regionais das quais destacamos a de Salvador (Bahia).
A professora Rosali Braga Fernandes (Processos Recentes de Urbanização/Segregação em Salvador: O Miolo, Região Popular e Estratégica da cidade, 2004) após descrever a caótica urbanização que se espalha pelo mundo ocidental, na Europa e nas colônias de além-mar, chama atenção para iniciativa dos governos militares que “impulsionam este tipo de crescimento urbano quando, como no caso de Salvador por exemplo, constrói grandes conjuntos habitacionais através do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) em lugares distantes e quase sem infraestrutura”.
Não ficou restrita à área econômica, strictu senso, tecnológica, agrícola e industrial, o desenvolvimento brasileiro neste período dos governos tenentistas de 1920. Felipe Maruf Quintas, doutor em Ciência Política, analisou os Governos Militares no livro Regime Militar – A Construção do Brasil (2024) de onde selecionamos as seguintes instituições criadas entre 1967 e 1979: Fundação Nacional do Índio (Funai, 1967), Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme, 1969), Central de Medicamentos (Ceme, 1971), Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema, 1973), Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev, 1974) e Fundação Nacional de Artes (Funarte, 1975).
Como se observa, o Brasil despontava para ocupar posição de independência no cenário internacional, o que não era desejado pelos EUA e, de algum modo, pelas potências europeias. Se as oposições estrangeiras e nacionais se uniram em 1932 contra Getúlio Vargas, na falácia da luta por uma Constituição, agora se uniam contra a ditadura militar: a redemocratização.
Pode-se entender que, ao “não aceitar um novo Japão” nas Américas, Henry Kissinger dava o pontapé inicial da luta contra o desenvolvimento autônomo brasileiro, com as denominadas “crises do petróleo”, na década de 1970. Qual crise passava o petróleo se as reservas mundiais cresceram mais do que o dobro, de 326 bilhões de barris, em 1970, para 684 bilhões em 1980?
Na verdade, foi uma crise econômica que atingiu fortemente o Brasil, importador de quase todo petróleo que consumia. Antes da ida para o mar, ou seja, a produção terrestre de petróleo nunca superou 200 mil barris/dia, mas hoje, com o pré-sal a produção atinge 4 milhões de barris/dia, superando a necessidade do consumo nacional, até pela desindustrialização provocada pela governança financeira no Brasil.
Tanto pelos empreendimentos dos governos dos tenentistas, quanto pela necessidade de compra de petróleo, o Brasil se endividara. E, na década de 1970, os EUA iniciam com juros de 4% ao ano, mas os levam próximos a 20% a.a., antes de 1980. O Brasil sucumbe e recebe o primeiro golpe, o da sucessão do presidente Geisel, com a designação do general João Batista de Oliveira Figueiredo, filho de Euclides de Oliveira Figueiredo, que lutou contra Vargas em 1932.
João Batista, oficial de cavalaria, pouco ou nada conhecia de economia e finanças, e teve privatistas e neoliberais notórios como seus ministros: Mário Henrique Simonsen, Golbery do Couto e Silva, Márcio João de Andrade Fortes, Murilo Paulino Badaró, Eliseu Resende, Nestor Jost, Karlos Heinz Rischbieter, entre outros, e o camaleônico “czar” da economia, Antônio Delfim Netto.
O desenvolvimento cessa, abrem-se as portas para a recessão e domínio do capital financeiro apátrida. José Murilo de Carvalho (Cidadania: Tipos e Percursos, 1996) faz observação bastante pertinente: “O brasileiro foi forçado a tomar conhecimento do Estado e das decisões políticas, mas de maneira a não desenvolver lealdade em relação às instituições. O caminho para uma cidadania ativa era para ele muito mais longo do que para os súditos inglês e alemão”.
Ressalto que, para o britânico, a qualificação que lhe dá o Estado é súdito e não cidadão. E este “longo caminho” diz respeito à instrução que não é projeto permanente nem prioritário dos governos brasileiros, exceto para Getúlio Vargas (levado ao suicídio) e Leonel Brizola, contra o qual se uniram todos os matizes políticos, da extrema esquerda à extrema direita pela campanha persistente, sem respeito ao factual, das comunicações de massa, com destaque para o Sistema Globo.
Brasil cai na alienação e na corrupção neoliberal
Com o domínio neoliberal financeiro, enormes quantidades de falsas informações passam a constituir verdades, sendo a mais grave e importante aquela voltada contra o Estado como ente autoritário, contrário aos interesses do povo e que deve e vai, gradativamente, sendo destruído por políticos eleitos.
Das inúmeras inverdades e prejuízos causados por esta avassaladora doutrinação, tem-se que eleição é sinônimo de democracia e que não é o Estado quem protege o cidadão da ganância privada. Desde a condenação da cúpula golpista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Poder Judiciário passou a simbolizar o Estado e ser vítima de ataques dos EUA.
Fiquemos apenas numa das falácias que foram permanentemente alvo da doutrina neoliberal: os limites de gastos ou o “Teto de Gastos” ou, ainda, não se pode gastar mais do que arrecada.
No Brasil, o doutor em economia Gustavo Galvão dos Santos fez sua Tese de Doutoramento que se transformou no livro Finanças Funcionais e a Teoria da Moeda Moderna, 2020, com base na teoria desenvolvida pelo economista estadunidense Larry Randall Wray (Understanding Modern Money: The Key to Full Employment and Price Stability,1998). Esta obra de Randall Wray foi traduzida pelo professor José Carlos de Assis e publicada pela Editora Contraponto, em 2003.
Gustavo Galvão contradiz uma falsa informação neoliberal: “A moeda foi criada pelo Estado, muito antes de existir comércio como meio de vida ou relevância na economia. Sua criação ocorreu como forma de antecipação de impostos, dívida pública ou crédito dos produtores de cereais contra o Estado”.
André Lara Resende escreve: “A defesa da austeridade retoma a velha e anacrônica crença de que a inflação é resultado do excesso de emissão monetária e que o déficit fiscal é a principal fonte de emissão de moeda. O Fantasma da Teoria Quantitativa, silenciosamente aposentado a partir do fim do século 20, continua a cumprir seu papel histórico de assustar com a ameaça da inflação para atar as mãos do Estado e pressionar pela redução dos gastos públicos” (Valor, Globo, 2021).
Desde João Figueiredo e José Sarney, não eleitos pelo voto popular, passando por Fernando Collor, pelo “não confiável para própria família” Fernando Henrique Cardoso, por Itamar Franco, pelo nem sempre bem assessorado Luiz Lula da Silva, pela difícil comunicadora Dilma Rousseff, pelo golpista Michel Temer e pelo entreguista e golpista com certidão do Judiciário Jair Bolsonaro, o país regride adotando teoria econômica imprópria para um país que tem tudo para ser das maiores potências mundiais, exceto o mais importante: a instrução universal, no mínimo uma escola de tempo integral em cada um dos 10.670 (2022) Distritos Municipais para criança e jovem, dos 3 aos 18 anos, laica, pública, gratuita e obrigatória.
E, junto a esta escola, uma unidade da medicina preventiva e da família do Sistema Único de Saúde (SUS). Estes são os passos básicos para a Soberania e para a construção do cidadão brasileiro.
















