Soberania e dependência: o público e o privado no Brasil

Entenda como privatização ao longo da história revela retrocessos civilizatórios.

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Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)
Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)

Creio que o verdadeiro trabalho político, numa sociedade como a nossa, é o de criticar o funcionamento de instituições que parecem neutras e independentes: criticá-las de modo que a violência política que sempre exerceu, obscuramente, por meio delas seja desmascarada e possa ser combatida

Michel Foucault, debate com Noam Chomsky, Human nature: justice versus power, 1971

Em 2024, na programação para seus associados, a Biblioteca do Exército distribuiu O Mercenário Moderno – Exércitos Privados E O Que Eles Significam Para A Ordem Mundial, do militar, empresário e professor estadunidense Sean McFate, publicado pela Oxford University Press (2017) e traduzido por Adeliz de Siqueira Ferreira.

Já expusemos, nesta série Soberania e Dependência, sob diversos ângulos, o retrocesso civilizatório trazido pela “redemocratização”, desde 1979, fruto do golpe aplicado na sucessão do presidente Ernesto Geisel e, sobretudo, o que veio a ser implementado durante e após o governo de José Sarney: o empoderamento das finanças apátridas no domínio brasileiro.

A bem da verdade, desde 1549, quando, cumprindo o Regimento de D. João III, Tomé de Sousa constituiu, em Salvador (Bahia), o Governo Geral, ele já privatizava boa parte do Estado que se formava. Mas o público ainda era representado pelas Forças Armadas (à época e no Brasil, a Marinha), pela polícia e aplicação da justiça (ouvidoria), e pelas finanças e controle da economia (provedoria). Tudo mais era privado.

Com esta publicação, pode parecer que as Forças Armadas, não obtendo sucesso no golpe, apelam para a privatização de si mesmas, quem sabe como alternativa de reconquista do poder. Entretanto, o mal é antigo. Não foram somente o Brasil Colônia, depois o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822), o Brasil Império (1822-1889) e o Brasil República Velha (1889-1930) que tiveram muito mais funções privados do que públicas.

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Quando Getúlio Dornelles Vargas assumiu a presidência do Governo Provisório, em 3 de maio de 1930, os grandes mestres da organização e da administração de empresas e de estados já haviam falecido: o francês, nascido na Turquia, Jules Henri Fayol (1841-1925) e o alemão, influenciado por Karl Marx, Max Weber. Também o elaborador dos “princípios da administração científica”, Frederick Winston Taylor, há muito mais nos deixara.

Podemos, preliminarmente, concluir que, diferentemente de todas as potências modernas, o Brasil pretenderia ser uma potência privada? Em absoluto. Os períodos em que o Brasil mais cresceu, mais criou empregos e elevou o padrão de boa parte do povo, foram aqueles em que o Estado tomou a si o encargo de promover o desenvolvimento: governos Vargas e os governos dos tenentistas (anos 1920), agora generais, de 1967 a 1979.

Ao se representar fora das fronteiras, os países mostram-se politicamente pelo chefe da missão no exterior, o embaixador, e também pela sua capacidade de se defender de agressões externas, pelo adido militar, e pela sua formação civilizacional, o que lhe dá a condição distinta, muitas vezes única, pelo adido cultural. Se não fosse uma função pública, mas privada, toda representação diplomática seria nada mais do que uma sucursal comercial. Ter-se-ia somente o adido ou encarregado dos negócios.

A função pública não surge da iniciativa privada, mas da própria origem e formação das nações. Está na sua formação e influirá na sua estrutura organizacional. Hoje o Brasil se encontra desgovernado, não pelos políticos, que muito contribuem, nem pelos poderes, que nada agregam, mas por tudo que vem sendo feito desde 1980 para nos confundir e beneficiar as finanças apátridas.

Se evocamos, amiúde, a figura de estadista de Getúlio Vargas, foi por ter sido o único dirigente do Brasil que se preocupou em constituir, com as demandas e o estágio do Brasil nas primeiras décadas do século 20, uma estrutura de Estado Nacional, não de fazenda de café, nem de país de homens escravos.

Funções públicas destinam-se à sociedade para lhe prestar serviço, quer no universo das ações de soberania, quer, e mais comumente mencionados, para formação da cidadania: ensino, saúde, habitação, mobilidade urbana, defesa dos direitos e comunicação social. Não são serviços transitórios mas que deles dependem o funcionamento permanente da sociedade, com ações ininterruptas, exercidas com transparência, democraticamente com o apoio e a participação de toda população.


Considerações sobre as funções públicas

Na fundamental obra A Origem Da Família, Da Propriedade Privada E Do Estado, Friedrich Engels afirma que “ninguém podia pertencer ao povo romano se não fosse membro de uma gens e, consequentemente, de uma cúria e de uma tribo”. Entretanto, como adverte Max Weber, “nem toda a classe de contato entre os homens é de caráter social, apenas um comportamento próprio, orientado quanto ao sentido pelo comportamento dos outros”.

E expande suas considerações para distinguir a simples imitação, as reações do que se configure, unicamente, um dado central, constitutivo: racional quanto a fins e valores; congregando emoção e transmitindo um hábito vital. E que desta ação social ter-se-á a relação social, que pode variar da solidariedade à luta, vindo a constituir o Estado, ou seja, ao povo politicamente organizado em determinado território.

Duncan Kennedy (1942), jurista, professor na Universidade de Harvard, é um crítico do sistema jurídico que qualifica como reprodutor de hierarquias. Em trabalho de 1982, afirma que, apesar disso, o direito é “em sua essência uma força progressista, malgrado as deformações que dispositivos do capitalismo lhe possam causar”. E pode ser “um instrumento eficaz na luta contra as forças dominantes”. “Na sala de aula”, reflete Kennedy, existe mais “um conservantismo pedagógico do que um desabrido ou moderado liberalismo”.

Como se pode observar, as finanças, no poder absoluto no Brasil há meio século, colocaram na nova bipolaridade: o liberalismo, tendo por corolário, liberdade e democracia, versus o comunismo ou esquerdismo, de onde a ditadura e a opressão.

Na verdade, o que temos são os confrontos entre o nacionalismo vs globalização, a participação vs segregação, o valor do trabalho vs a uberização. O poliemérito António Manuel Hespanha, doutor em direito, história, professor na Europa, Ásia e América, ressalta serem dos enfoques orientadores o da “relação entre direitos de vocação cosmopolita e os embebidos em âmbitos locais”. Na obra, Cultura Jurídica Europeia, síntese de um milênio (2015), ao longo de mais de 600 páginas, Hespanha discute o global e o local, percorrendo as ideias jurídicas e as análises históricas e sociológicas.

E sumariza: ‘O mais certo é que os projetos de globalização do direito acabem por dar origem a um direito glocal, ou devam mesmo transformar-se nisso para serem localmente aceitáveis. Isto quer dizer que, em nome de um direito democraticamente enraizado na cultura local – medido isto pela sua adoção pela malha institucional e procedimental dos Estados democráticos -, pode ser que direitos humanos cosmopolitas tenham de ser suspensos, enquanto eles não conseguirem conquistar consensos nas Casamatas da sociedade civil, como diria Gramsci’.

“Os Estados são necessariamente independentes uns dos outros”, Johann Gottlieb Fichte (Fundamento do Direito Natural, 1797). Mas o planeta é constituído de gens, cúrias ou tribos, e aí acrescenta Fichte: “Vários Estados unem-se e garantem uns aos outros, e mesmo a qualquer Estado que não faça parte da aliança, a sua independência e a inviolabilidade do direito próprio de autoconservação”. E o filósofo alemão esclarece: a confederação é uma liga de povos, não um Estado de povos.

O público é específico, cada Nação tem seus sistemas de relacionamentos trazidos pela sua formação histórica que vai se caracterizando no tempo com as especificações nacionais. O sucesso político está no saber transferir esta cultura para as normas nacionais. E fazê-lo mediante aceitação de todos. A pouca consulta plebiscitária é uma das falhas na construção jurídica brasileira, que vem enveredando pelo caminho privado, descaracterizando como brasileira, desde a imposição do Consenso de Washington (1989).

Como ensinou Rudolf von Jhering (1888), a paz é o fim que o direito tem em vista, pois a vida do direito é a luta. “Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito foram, na sua origem, arrancadas àquelas que a ela se opuseram”. “O direito não é pura teoria, mas uma força viva”.

Em 1908, o grande civilista brasileiro, cearense Clóvis Beviláqua, filósofo, literato e historiador, publicou a primeira edição da Teoria Geral do Direito Civil. O nosso Código Civil surge em 1916, promulgado em 1º de janeiro de 1917. Mas, na 2ª edição (1929) da obra de Beviláqua, encontra-se:

Lei é o direito objetivamente considerado. Consequentemente é uma regra social obrigatória. Dentre as normas sociais, que dirigem o procedimento dos homens, a lei se distingue por ser uma ordem geral, emanando de autoridade reconhecida e imposta coativamente à obediência de todos.

Porém as funções públicas não só decorrem da formação das nações, de sua história, de seus recursos, e de uma legislação. A administração do país deve se harmonizar com os objetivos nacionais e sob o império da cultura da população. O Brasil teve no grande teórico da administração, o baiano Alberto Guerreiro Ramos, do Conselho Consultivo e chefe do Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), entre 1956 e 1964, o formulador das bases de uma sociologia e administração brasileiras. Com o golpe de março de 1964, Guerreiro Ramos, obrigado a sair do Brasil, aceitou o convite da Escola de Administração Pública da Universidade do Sul da Califórnia para lá ensinar e para onde se mudou e veio a falecer em 6/4//1982.

Residente nos Estados Unidos da América (EUA), Guerreiro Ramos obtém, no biênio 1972/73, licença para escrever A Nova Ciência das Organizações, que será traduzido por Mary Cardoso e publicado, em 1981, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e de onde as citações que se seguem.

O poder financeiro vem confundindo e impondo um tipo de organização que Guerreiro Ramos afirma “não se ajustar ao espectro da conduta humana”. O mercado não é o todo poderoso poder supremo a coagir a sociedade humana, ao contrário, “deve ser regulado e delimitado como um enclave entre outros enclaves que constituem o conjunto da tessitura social”. E prossegue: “o desenvolvimento de adequadas organizações e instituições é avaliado do ponto de vista de sua contribuição direta ou indireta para o fortalecimento do senso de comunidade do indivíduo. Isso conduz ao tipo multidimensional de teoria política e organizacional, conceitual e operacionalmente qualificada para o encorajamento, tanto das atividades produtivas dos cidadãos quanto de seu senso de significativa atualização pessoal e social”. “O bem-estar dos cidadãos é uma categoria peculiar a cada país, e não é medido por critérios comuns a todas as nações”.

Por que um “teto de gasto” que só beneficia os financistas apátridas, se a Teoria da Moeda Moderna, como desenvolveu, nos EUA, Larry Randall Wray, Understanding Modern Money: The Key to Full Employment and Price Stability (1998), e no Brasil, Gustavo Antônio Galvão, Finanças Funcionais e a Teoria da Moeda Moderna (2020), pode nos levar ao pleno emprego, soluções ambientais, prosperidade?

Na avaliação do professor Carlos Lessa (1936-2020): “Vivi a era de nosso heróico nacional-desenvolvimentismo. Sabíamos que o investimento público era a fonte do progresso. Depois fomos derrotados pela Banca e seu neoliberalismo, que trouxe o atraso. Esse livro de Gustavo Galvão mostra que estávamos certos ao delegar ao Estado a liderança do desenvolvimento, sem riscos para o erário público ou a inflação”.

Ao privatizar a energia nuclear brasileira, vendendo participação da Eletronuclear aos irmãos Wesley e Joesley Batista, o presidente Lula contradiz a palavra que abriu o desfile de 7 de setembro de 2025, em Brasília: onde fica a SOBERANIA senhor presidente?

Ao anunciar o início da produção do maior campo de petróleo no Brasil pela norueguesa Equinor, toda dirigida para exportação sem pagamento de imposto sobre o lucro, cabe perguntar senhor presidente, onde vai buscar recursos para promoção da CIDADANIA no Brasil?

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