Soberania, também uma questão cultural

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Entrada do Templo de Salomão da IURD (foto de Valter Campanato, ABr)
Entrada do Templo de Salomão da IURD (foto de Valter Campanato, ABr)

ONGs, religiões neopentecostais e a ideologia neoliberal

 

A aproximação do Brasil com a África se dá desde o período colonial. Desenvolvemos uma economia atlântica, “um mosaico de produções não capitalistas que garantiam o abastecimento interno e o crescimento do tráfico negreiro através do Atlântico, continuamente alimentado por sua vinculação estrutural com a exacerbação da diferenciação social na África” (João Fragoso e Manolo Florentino, O arcaísmo como projeto, Diadorim, Rio de Janeiro, 1993).

A África está no próprio descobrimento do Brasil pela nação europeia que vivia à época seu maior esplendor: “Que eu canto o peito ilustre lusitano, a quem Netuno e Marte obedeceram” (Camões, Os Lusíadas, Canto I,3). No entanto, nações eurocolonizadas de ambos os lados do Atlântico, apenas em 28 de março de 1961 tiveram constituída a primeira representação diplomática brasileira na África, em Acra, na então independente do Reino Unido (1957) República de Gana.

Gana tivera, como Costa do Ouro, a presença portuguesa desde o século 15 (Castelo de São Jorge da Mina) e passara, antes de ser a Golden Coast britânica, pela presença de holandeses, suecos, dinamarqueses e alemães.

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O sistema político ancestral ganense faz parte do que os antropólogos denominam “tallensi”, que se interliga com seus vizinhos, convive em “áreas de transição tribal”, ainda que mantenha suas identidades linguísticas, culturais e políticas (apud Meyer Fortes, “O sistema político dos Tallensi nos territórios da Costa do Ouro”, in Fortes & Evans-Pritchard, Sistema Políticos Africanos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981). Isso explica a ausência de conflitos tribais pré-coloniais nesta ampla região que abrange os atuais estados de Gana, Togo, Costa do Marfim e Burkina Faso, cercados pelo rio Níger.

A religião foi, no Brasil e na África Ocidental, forte elemento da colonização. Aqui, a religião católica que chega com os jesuítas em 1549, na formação do Estado Colonial brasileiro. Em Gana, os protestantes, que no crítico trabalho do historiador, pedagogo e professor S. K. Odamtten, The Missionary Factor in Ghana’s Development up to the 1880s (Waterville Publishing House, Accra, 1978) apenas “ensinaram para ler a Bíblia”, nada que desse condição do instruído se desenvolver cultural e tecnicamente.

“A cultura”, como declarou Abdel Aziz El-Sayed, diretor-geral da Organização da Liga Árabe para a Educação, a Cultura e a Ciência (Alecso), em 1974, na abertura da Conferência no Cairo, “possui uma identidade específica, ligada aos caracteres mais íntimos de um povo, à natureza do seu pensamento e do seu patrimônio, à sua percepção das coisas e à sua forma de as considerar”. “É a cultura que distingue os povos, uns dos outros; contudo não exclui os contatos com outros povos; bem pelo contrário, ela encoraja esses contatos e esses encontros” (Rapport final et recommandations, SHC-74/WS/25, Unesco, Paris, dezembro de 1974).

 

Marxismo e neoliberalismo

Porém é necessário estar sempre atento até onde o encontro de culturas as enriquece e quando se impõe como elemento colonizador. Trazemos do linguista e escritor guineense Alfa Ibrahima Sow, em seu idioma natal Alfaa Ibraahiim Soo (1934–2005), esta importante reflexão:

“Ao longo da sua colonização, os povos da África Negra nunca deixaram de exprimir e de impor a sua identidade, a sua originalidade, a sua negritude ou, se quiser, a sua negro-africanidade. E, ao aceitarmos enveredar pura e simplesmente pela via do marxismo-leninismo, arriscávamo-nos, como acontece a alguns dos nossos intelectuais, a nos refugiarmos por detrás da sua autoridade, tornando-o num fim em si mesmo, quando, em algum momento da história dos povos, a ideologia revolucionária se substituiu à própria revolução. Para inúmeros intelectuais e dirigentes políticos, o marxismo-leninismo veio tornar-se uma espécie de metalinguagem hermética, uma ‘marabutagem’* de novo tipo e recreação intelectual que há necessidade de erudição e cujas mesquinhas maquinações políticas se sobrepõem à preocupação pela ação revolucionária”.

(*marabutagem deriva de marabutista, o feiticeiro que cura e resolve todo tipo de problema. Os “marabouts” subsaarianos derivam tanto do islamismo como do animismo, do cristianismo, do voodoo e da magia).

Este texto de A.I. Soo encontra-se nos “Prolegômenos” da Introdução à Cultura Africana, diversos autores, Instituto Nacional do Livro e do Disco, Luanda, 1980.

O marxismo-leninismo, como o neoliberalismo, este criticado até pelo intelectual liberal José Guilherme Merquior, como qualquer pensamento social, político, filosófico que não brote das reflexões sobre as realidades físicas e humanas de um espaço circunscrito e entendido como nacional, serão sempre colonizadores.

A República Popular da China (RPCh), liderança no processo da multipolaridade para as relações entre os Estados Nacionais, ao abraçar princípios marxista-leninistas para suas definições políticas internas, os restringiu às características chinesas, ao modo chinês de ser e compreender.

Estabelecer opção entre a bipolaridade – marxismo ou “mercado” – já é abrir mão da Soberania Nacional.

É o mercado quem dita as normas e valores no Brasil desde 1980. Sob ampla e imprecisa “democracia”, já o último governo do ciclo militar (1964–1985) submetia suas decisões ao representante das finanças internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI), que construíra o endividamento externo brasileiro para frear e deflexionar o desenvolvimento econômico e tecnológico brasileiro.

Os governos militares não tiveram todos as mesmas orientações. Podemos identificar três golpes no ciclo militar. O primeiro, construído pelos EUA, objetivava retirar as diversas esquerdas, inclusive militares, da participação do governo. Trouxe representantes do poder estadunidense para as principais definições da política nacional, agir na orientação da repressão, e modificar os rumos da política externa brasileira.

Deste período, com o apoio dos industriais paulistas e da extrema direita policial e militar, surge o golpe de 1967. Artur da Costa e Silva toma posse no dia em que começa a vigorar a Constituição de 1967, que dá relevo à segurança nacional, ao aumento dos poderes da União e do presidente da República, além de questões como a redução da autonomia individual e a suspensão dos direitos e garantias constitucionais por parte do Estado. O terceiro golpe foi menos explícito e se deu para sucessão do presidente Geisel.

Curiosamente, foi sob duas constituições que ficaram marcadas na história como “autoritárias” – 1937 e 1967 – que o Brasil conheceu seus períodos de maior desenvolvimento socioeconômico e de nítida soberania política. A primeira durou somente nove anos, a segunda foi mais longeva, 21 anos, porém a ambas sucederam Constituições liberais. A bem da verdade, a Constituição de 1967 começa a se desfazer no governo do general João Figueiredo (1979–1985).

 

Soberania pós 1990

Já no período da transição dos governos militares para a nova república, diversas manifestações demonstram que a soberania brasileira perdera sua predominância nas decisões do governo. As privatizações e a retirada do Estado Nacional da iniciativa e da gestão de setores econômicos, assim como de setores culturais e sociais, indicam que o País abriu mão de sua Soberania. E outro poder dela se apossou.

Neste artigo, não enumeraremos as privatizações e os organismos estatais que foram desativados ou incorporados a outros para nada mais realizarem. Isto já foi objeto de outros artigos, e há excelentes análises por estudiosos brasileiros de diferentes tendências políticas.

Trataremos das infiltrações, do domínio cultural do Brasil e das ações e projetos que dão guarida à falta do verdadeiro interesse nacional, da ausência da Questão Nacional na política brasileira.

A religião sempre foi e continua sendo elemento da nossa formação cultural. Dois profissionais, André Cardoso e Fábio Miranda, escreveram o artigo “O crescimento pentecostal e os desafios para o campo popular”, em 2020, no site Tricontinental, de onde transcrevemos algumas informações.

As “igrejas” que mais cresceram nos últimos 30 anos no Brasil foram as pentecostais, e, dentre estas, as neopentecostais, que aqui chegaram em 1977, com a criação da Igreja Universal do Reino de Deus, por Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares (R.R. Soares), este último, ainda nos anos 1970, dela se afastou para criar a Igreja Internacional da Graça de Deus. Estimam-se 25 milhões os neopentecostais no Brasil. Porém, conforme artigo de Cardoso e Miranda: “Os evangélicos, hoje (2019), têm 94 parlamentares no Congresso, sendo 85 na Câmara dos Deputados e nove no Senado.”

A história registra que o fenômeno religioso do protestantismo surge no século 16 com a primeira forma do capitalismo, o comercial, a partir de 1450. A Inglaterra tornou-se o país clássico do capitalismo. A expropriação dos agricultores aconteceu no último terço do século 15 e nos primeiros decênios do século 16. Assim surgiu a base do sistema capitalista. O protestantismo se espalha pela Alemanha, Suíça, Inglaterra, tomando características específicas, com os luteranos, calvinistas e anglicanos.

“Com a crise do modelo de acumulação capitalista iniciada no fim da década de 1970 inicia forte processo de reestruturação produtiva no fim de 80 e início de 90, com a instauração do neoliberalismo, forte flexibilização das leis trabalhistas, privatizações e retirada de outros direitos que fossem incompatíveis com esse novo modelo de acumulação, estimulando o livre mercado e a busca por saídas individuais da crise, individualizando os problemas sociais. Nesse contexto, a Teologia da Prosperidade, estrutura teórico-ideológica das igrejas pentecostais, ganha corpo e respalda o neoliberalismo nascente”, no citado trabalho de Cardoso e Miranda.

 

Organizações não-governamentais (ONGs)

As ONGs surgem majoritariamente após a II Grande Guerra, diante das ações empreendidas principalmente pelos EUA, ocupando espaços até então destinados às iniciativas privadas. Ganham apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) que, assim, pode expandir suas ações de modo mais autônomo em relação à estrutura rígida da Organização.

Logo tomam os espaços que, em muitos aspectos, eram ocupados pelas religiões ocidentais em suas ações beneficentes e assistenciais. Também desenvolvem ações preservacionistas e relativas ao meio ambiente. Nesta área as mais conhecidas são as suíças União Internacional para Conservação da Natureza (1948) e World Wide Fund for Nature, Inc (1961) e a canadense Greenpeace (1971).

As ONGs ora são classificadas como um setor de serviços, setor terciário da economia, ora como setor quinário, isto é um setor sem fins lucrativos. Porém o ganho das ONGs é majoritariamente político, a influência nas decisões governamentais, que proporcionarão riqueza a seus patrocinadores.

Um conjunto de ONGs atua no Brasil no sentido de fragmentar a unidade nacional, dividir ou pulverizar a Questão Nacional em questões identitárias: do sexo, da etnia, da cor da pele etc. Não que estas questões sejam desprovidas de sentido ou razão, mas não têm solução isolada, seu equacionamento e respostas vêm da implantação de políticas nacionais. Tratar o Brasil como a nação miscigenada, que ele é, e do atendimento de cidadão para toda população.

ONGs, religiões neopentecostais, a ideologia neoliberal atuam com as finanças apátridas para retirar a Soberania do Estado Brasileiro, deixando-nos sem capacidade de defesa das agressões do mercado, como vemos ocorrer em todo ocidente nesta terceira década do século 21.

 

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet).

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