Como tive a oportunidade de mencionar em recente seminário promovido pelo IESS – Instituto de Estudos de Saúde Suplementar, que contou com as honrosas presenças do ex-ministro José Cechin, do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e da Diretora Médica Dra. Vanessa Assalim, existe uma má judicialização da saúde, que é aquela que obriga as operadoras de planos de saúde cobrir procedimentos e eventos que não têm fulcro na legislação vigente, especialmente no Rol de Procedimentos e Eventos da ANS, que é editado com fundamento no parágrafo 4º. do art. 10 da Lei n. 9.656, de 1998.
Muitas decisões judiciais se esquecem que os planos de saúde representam um verdadeiro fundo comum, pois se baseiam no mutualismo, que é a socialização dos riscos. Em termos práticos, não são as operadoras que pagam pelas citadas coberturas, mas os próprios consumidores ou beneficiários do plano de saúde, sendo que o preço é estabelecido com base em estudo técnico-atuarial, e eventuais coberturas não previstas na legislação acabam distorcendo a equação econômico-financeira que norteou a contratação, exigindo que seus beneficiários tenham que pagar contraprestações pecuniárias cada vez maiores. Ademais, estas decisões acabam privilegiando alguns, que receberão cobertura maior do que aquela contratada, em detrimento de toda a massa de beneficiários.
Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, que discutia proposta de aumento de cobertura, mencionei que se faz mister verificar se os consumidores e os beneficiários têm condições de suportar tais ampliações de atendimento, pois serão eles, ao final, que irão pagar a conta, pois como dizem os americanos “Don´t have free lunch”. Alguém terá que pagar a conta, sendo que, muitas vezes, no afã de proteger, acabamos desprotegendo, pois muitas pessoas não terão condições de pagar seu plano de saúde, tendo que ser atendido pelo SUS, que realiza um extraordinário trabalho, mas que terá seus recursos diminuídos em face daqueles que não conseguiram pagar seus planos de saúde.
Ora, foi o próprio legislador quem definiu que o rol de coberturas seria estabelecido pela ANS, e, concomitantemente, também existem no parlamento inúmeros projetos de lei que objetivam o aumento de cobertura ofertada pelos planos privados de assistência à saúde aos seus consumidores e beneficiários, de modo que, é possível constatar a existência de sérios conflitos entre os próprios poderes constituídos com referência ao mencionado assunto.
Quando um juiz concede uma cobertura que não tem amparo na lei dos planos de saúde ele está criando uma “nova” obrigação para a operadora (e seus mutualistas), com efeito retroativo, invadindo a separação dos poderes e contrariando o princípio da legalidade, gerando, muitas vezes, externalidades positivas para os consumidores/beneficiários e negativas para as operadoras de planos privados de assistência à saúde, resultando em distorções nos custos dos planos e, principalmente, nos seus cálculos e estudos atuariais, impondo o oferecimento ao mercado de planos mais caros, que acabam restringindo o acesso de muitos consumidores a este mercado.
Por fim, trazemos à colação trecho de recente acórdão do STJ (Agint no Ag em RE n. 1.810.221-GO), relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, que bem apreciou a questão da judicialização da saúde, tendo mencionado na ementa que:
7. “Conforme adverte a abalizada doutrina, o fenômeno denominado ‘judicialização da saúde’ exige redobrada cautela e autocontenção por parte de toda a magistratura, para não ser levada a proferir decisões Documento: 141717455 – EMENTA, RELATÓRIO E VOTO – Site certificado Página 4 de 30 Superior Tribunal de Justiça limitando-se ao temerário exame insulado dos casos concretos, que, somados, correspondem à definição de políticas públicas, feita sem qualquer planejamento (que o Judiciário, pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orçamentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em benefício de todos e não de uma minoria’. Com efeito, o ‘grande risco da concessão judicial indiscriminada […] é que o summum jus (concessão de um direito individual mal investigado) se transforme em summa injuria (interesse coletivo desprotegido). Isto sem falar que o juiz se substitui ao Legislativo e ao Executivo na implementação de políticas públicas, concentrando em suas mãos uma parcela de cada um dos três Poderes do Estado, com sérios riscos para o Estado de Direito e para a segurança jurídica’ (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos)” (AgInt no AREsp 1619479/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 29/03/2021, DJe 05/04/2021)
Evidencia-se, portanto, que a sustentabilidade dos planos de saúde, inclusive daqueles administrados pelas entidades de autogestão, que não possuem finalidade lucrativa e que são geridos pelos próprios trabalhadores e servidores públicos, depende da forma como o judiciário aprecia as demandas dos consumidores e beneficiários que exigem coberturas que não possuem amparo na legislação vigente, o que gera grave instabilidade jurídica aos agentes envolvidos na atividade de saúde suplementar. Ademais, a última ratio do direito é, justamente, trazer previsibilidade e segurança jurídica.
José Luiz Toro da Silva – Advogado, Mestre e Doutor em Direito e Pós Doutorando na Universidade de Coimbra