‘Modernização conservadora’ avessa a transformação profunda
Uma vez completada a Independência, a organização nacional passa a ser responsabilidade exclusiva das forças internas brasileiras. Já não havia mais a Corte lisboeta para construir as instituições pelas quais a vida nacional se regeria. A autonomia traz consigo a responsabilidade, e esta, por sua vez, requer a sabedoria prática necessária para conservar a inteireza do edifício. Não há uma fórmula pronta para ela, disto decorrendo toda uma constelação de propostas e projetos que, mesmo discrepantes, precisam, em algum momento, se harmonizar para impedir o esfacelamento da nação no decurso histórico. Tarefa de estadistas, que agem no presente olhando para o futuro com base nos exemplos do passado e seguindo as referências permanentes da nacionalidade.
Com a abdicação de D. Pedro I, que exercia, aos moldes absolutistas, influência centrípeta e unificadora, evidenciaram-se as discórdias em torno dos rumos nacionais. As tendências mais extremas e polarizantes, como os “liberais exaltados”, também chamados jurujubas e farroupilhas, e os restauradores, também chamados caramurus e retrógrados, que defendiam o retorno de D. Pedro I e até mesmo a reunificação com Portugal, foram esmagadas pelos ditos liberais moderados, à frente da Regência.
O liberalismo moderado dos regentes buscava, em essência, compor um núcleo gravitacional centrista, composto por oligarcas, aristocratas e bacharéis, para preservar a base institucional da sucessão real. Convinha impedir tanto a instauração da república, que interromperia o flanco americano da Dinastia de Bragança, quanto atrair novamente o interesse colonizador lusitano, pondo em risco a autonomia dos dirigentes locais.
Toda definição da correlação de forças políticas acarreta consigo certa definição da agenda. No caso do triunfo dos liberais moderados, a agenda política vencedora foi o dilema entre centralização e descentralização do exercício do poder, ou seja, entre o unitarismo e o federalismo. Num país do tamanho do Brasil, eivado de diferentes realidades na mesma comunidade pátria, a distribuição de poder entre as diferentes instâncias já se fazia sentir como questão crucial da organização nacional.
Em princípio, os setores mais liberais eram a favor de maior descentralização, e os conservadores, de maior centralização. Em termos práticos, o Ato Adicional de 1834, que emendava a Constituição do Império, teve caráter descentralizador, apesar de ter unificado o poder central. Dissolveu o Conselho de Estado do Império do Brasil e criou as Assembleias Legislativas provinciais, e, ao mesmo tempo, transformou a Regência Trina em Una. Representou, pois, uma solução de compromisso, bem ao gosto dos grupos dirigentes nacionais. Em 1840, a Lei Interpretativa do Ato Adicional atenuou seu caráter descentralizador, retirando prerrogativas das províncias e ampliando o controle do poder central sobre a Guarda Nacional.
O dilema centralização X descentralização perduraria até o final do II Império e estaria presente na plataforma dos dois principais partidos do período: o Partido Liberal, dos “luzias”, formado pela aproximação entre alguns liberais moderados e outros outrora exaltados, e o Partido Conservador, dos “saquaremas”, formado pela aproximação entre outros liberais moderados e alguns caramurus.
Em princípio, o Partido Liberal era favorável à descentralização do poder, e o Partido Conservador, a favor da centralização. Porém, havia muito mais em jogo. Os luzias inclinavam-se à reprodução dos modelos institucionais existentes em outros países, sobretudo na Grã-Bretanha, modelo exemplar de monarquia parlamentarista com alto grau de descentralização política nas mãos das elites locais. Os saquaremas, por sua vez, desconfiavam da importação de modelos prontos e preferiam criar soluções nativas para os problemas internos. Não lhes importavam tanto a adequação a padrões civilizatórios ditos superiores, mas, sim, o encaminhamento pragmático das questões concretas para a manutenção das instituições nacionais que lhes conferiam liderança hierárquica dentro do país.
São conhecidas as posições do conservador Bernardo Pereira de Vasconcelos acerca da relatividade política e da importância de ajustar a ação e os meios às novas realidades a fim de salvaguardar as instituições. Liberal arrependido e escravocrata convicto do papel “civilizatório” da África no Brasil, ou seja, da escravidão, ele tinha todos os motivos para apregoar uma institucionalidade de baixo dinamismo. No seu juízo, que exprime o sumo do empirismo conservador, “a perfeição de obra tal só pode provir-lhe da experiência; ela e o tempo é que hão de mostrar a necessidade das alterações e modificações, que cumprirá fazer; e o governo as mandará adotar, quando convencer-se da sua importância e utilidade” (In: CARVALHO, José Murilo (org.). Bernardo Pereira de Vasconcelos – Coleção Formadores do Brasil, 1999, p. 244).
Também é conhecido o exorcismo do “demônio centralizador” do Império pelo liberal Tavares Bastos, reverente ao liberalismo resplandecente no mundo anglo-saxão. Num país escravista, controlado por ordens privadas de cunho feudal ou semifeudal e desprovido de educação pública de massa, Tavares Bastos insurge-se contra a “onipotência do Estado” e reclama a liberdade capitalista de mercado sem reivindicar os seus pressupostos políticos e sociais, como a superação do legado da escravidão e a escolarização pública.
Os entreveros entre os dois partidos eram mediados pelo Poder Moderador do Imperador, que, juntamente ao Conselho de Estado, recriado em 1841, constituiu o ponto de equilíbrio das elites dirigentes nacionais durante o II Império. A Coroa foi o centro simbólico e institucional de união entre os dois partidos-irmãos, que, tendo se originado do mesmo útero e pretendendo um alcance nacional restrito às elites, disputaram com veemência os cargos públicos no Parlamentarismo à brasileira, que, todavia, não era, à época, mais elitista que o britânico.
Num outro aspecto também estavam de acordo os liberais “cosmopolitas” e os conservadores “nacionalistas”: a modernização social e econômica brasileira deveria ser tão gradual quanto fosse preciso para resguardar as instituições nacionais. Longe de ter sido um período de estagnação, o Império conheceu um forte dinamismo interno, com os empreendimentos do Barão de Mauá, o início da construção de linhas ferroviárias, a atração de imigrantes europeus, a expansão da cafeicultura capitalista, a mercantilização da terra com a Lei de Terras de 1850, e o paulatino esgotamento da instituição escravista sob a influência da lei Eusébio de Queirós, de 1850, que aboliu o comércio de seres humanos com a África.
A “revolução burguesa” brasileira sucedeu-se, assim, calma e gradativamente, sem os arrancos revolucionários que tiravam o sono das elites brasileiras. Progresso, sim, mas com ordem. Ironia das ironias: os maiores progressos administrativos e econômicos foram efetuados pelos gabinetes conservadores. Destaca-se o pensamento do saquarema Visconde do Paraná, líder do Ministério da Conciliação, que reuniu conservadores e liberais: “Não há boa conservação sem que haja também progresso”.
O progresso não cairia do céu, por isso ele defendia que “devemos procurar melhoramentos, não só materiais, mas também intelectuais e morais”. Nesse período, de extraordinária concórdia política entre as facções divergentes, o Brasil ganhou seu primeiro parque industrial, estabeleceu o Conselho Naval, aprovou os estatutos da Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II, fundou o Imperial Instituto de Meninos Cegos, executou a nova política de tributação alfandegária, entre outras providências.
Tudo isso, porém, foi muito pouco perto do que o Brasil realmente precisava para aproveitar seus recursos em prol do seu desenvolvimento econômico e social. Num mundo que se modernizava na velocidade das ferrovias, carro-chefe da revolução industrial nos Estados Unidos e na Europa continental em meados do século 19, a “modernização conservadora” brasileira assumia compleição experimentalista, avessa a qualquer transformação mais profunda que abalasse estruturas e hierarquias consolidadas. O país havia sido bem sucedido em construir instituições estatais, porém a nação ainda precisava ser representada.
A emancipação do trabalho e a disseminação da educação, já presentes no projeto nacional de José Bonifácio, não receberam a devida consideração. O país carecia de estradas e fábricas, mas o governo pouco mais tinha a oferecer do que algum protecionismo tarifário que, numa economia ainda escravista, pouco podia fazer para alavancar a indústria nacional.
A questão social e a inadiabilidade do desenvolvimento somente passariam a ser levantadas pelos abolicionistas e pelos positivistas, que renovaram a agenda política nas últimas décadas do século e abriram as portas para novas concepções de instituições, não apenas como protetoras da ordem privada de elites aristocráticas, mas como promotoras e realizadoras de um ideal compartilhado de nação capaz de descer ao povo e viver nas entranhas profundas da sociedade nacional.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.