Em tempos de emergência climática como o que vivenciamos, com o planeta já em febre e a perda da fauna e flora dos biomas brasileiros por meio de incêndios florestais e desmatamento ilegal, surgem algumas vozes que nos mostram que ainda é possível ter esperança de que faremos algo rápido para conter o estado de coisas. Mas é difícil ter esperança quando, no contexto interno, vemos que os povos indígenas ainda lutam pela demarcação de suas terras, enfrentando inúmeras resistências difíceis de superar.
Uma das formas de conter o colapso climático é ouvir a voz dos povos originários, entendendo que defender a posse de seus territórios é garantir o meio ambiente equilibrado e a possibilidade de vida para as futuras gerações.
Se persistirem a discriminação, o desrespeito e o descaso com a demarcação de terras indígenas, comprometemos não apenas a sobrevivência física e cultural desses povos, mas a própria possibilidade de vida humana na Terra.
A Constituição de 1988 assegurou o direito à diferença dos povos indígenas, o respeito à sua organização social, línguas, costumes, tradições e crenças, além de estabelecer que os direitos dos indígenas sobre as terras que ocupam são originários. Também a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas, dispõe sobre os direitos culturais e étnicos coletivos, o direito à terra e aos recursos naturais, a manutenção das estruturas econômicas e modos de vida tradicionais, o direito consuetudinário e o direito coletivo à autonomia.
Mesmo com todos os direitos conquistados, os povos indígenas brasileiros ainda estão vulneráveis, confinados em territórios cada vez mais cercados pelas motosserras ou pelos tratores do agronegócio, revelando que o antigo projeto de “aldeamento” não deixou de existir, dada a persistência das violações à propriedade coletiva e à integridade física desses povos.
O artigo 231 da Constituição brasileira reconhece como preexistente o direito dos indígenas sobre suas terras, e a demarcação tem natureza meramente declaratória. Ou seja, o que se busca é apenas a regularização das terras, evitando colocar em risco a integridade e a sobrevivência dos povos indígenas.
Em 2023, em julgamento emblemático, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou a tese do “fato indígena”, julgando inconstitucional o “marco temporal”. Pela tese do marco temporal, os povos indígenas só poderiam reivindicar terras que ocupavam até a data da Constituição de 1988.
Logo após, foi editada a Lei 14.701/2023, pelo Congresso Nacional, que, em sentido diverso ao julgamento do STF, restabeleceu o “marco temporal” com a derrubada do veto presidencial sobre a questão.
Criou-se, com isso, um impasse: se o Congresso Nacional poderia promulgar uma lei sobre matéria já julgada inconstitucional pelo STF, ou se o STF julgou uma matéria que já vinha sendo objeto de discussão legislativa, antecipando-se à votação no Congresso e imiscuindo-se na esfera legislativa. A discussão é objeto de Ação Direta de Constitucionalidade no STF (ADCT 87/DF), sendo que o ministro Gilmar Mendes criou uma comissão especial que visa a um consenso para o anteprojeto de lei complementar, elaborado a partir das sugestões de todos os participantes.
Espera-se o sucesso na formalização desse consenso, e que ele seja favorável ao direito dos povos indígenas sobre suas terras. É necessário que esses povos continuem com suas atividades produtivas, culturais e ancestrais, transmitindo seus ensinamentos, sua resiliência e sua capacidade de preservação dos recursos ambientais necessários ao seu próprio bem-estar — onde reside, também, a possibilidade de sobrevivência de todos.
Uma compreensão holística de que o meio ambiente equilibrado compreende o direito à demarcação das terras indígenas é um bom começo para demonstrar que estamos ajudando a evitar não apenas retrocessos normativos, mas também o caos climático e o desequilíbrio ambiental com os quais estamos nos deparando.