Transição energética e retorno ao pré-capitalismo

Reflexão crítica sobre a transição energética e seus desafios no Brasil: qualidade versus quantidade na busca por sustentabilidade.

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Torres de energia elétrica (Foto: Marcello Casal Jr./ABr)
Torres de energia elétrica (Foto: Marcello Casal Jr./ABr)

O grande salto do desenvolvimento europeu, entendido por ocidental, ocorreu quando, incorporando as tecnologias chinesas, aventurou-se pelo Oceano Atlântico e descobriu o Novo Mundo (século 15). As Américas enriqueceram a Europa e possibilitaram que o Velho Continente buscasse novas formas de organização social e produzisse bens de consumo, além dos que importava do Oriente. O conceito de Ocidente incorporou as colônias europeias nas Américas.

A situação, que havia perdurado por mais de dois milênios, em pouco mais de três séculos trouxe um novo e importante divisor da sociedade: a Revolução Industrial, em 1760.

Examinemos, sob a ótica da energia, o que ocorreu na sociedade humana da Roma pré-cristã (República Romana, 509 a.C. a 27 a.C.) à Londres, dos reis Jorge da Casa de Hanover (1714 a 1830).


Energia na evolução social do homem

O domínio das fontes de energia foi a longa e inafastável evolução do homem na Terra, das suas relações com os outros homens, com os animais e com a natureza.

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A República foi, do ponto de vista da participação social, um retrocesso em relação à Monarquia romana. Leia-se no historiador José Jobson de Andrade Arruda (“História Antiga e Medieval”, Editora Ática, SP): “A substituição da Monarquia (753 a.C. a 509 a.C.) pela República foi um ato reacionário dos patrícios, que afastaram a realeza (monarquia), comprometida com as camadas inferiores. O monopólio do poder passou às mãos do patriciado, enquanto a plebe era mantida à margem. A República Romana era profundamente aristocrática”.

As energias da época tinham origem na domesticação dos animais e na escravização dos próprios homens, além da solar, eólica, das águas e do fogo.

O mundo ocidental, do ponto de vista da produção de “joules” (unidade de medida de energia mecânica, trabalho, e térmica, calor), ficou praticamente inalterado por 2.260 anos. Quem veio quebrar esta situação foram as energias fósseis, que, em 260 anos, transformaram completamente o mundo, ocidental e oriental.

Hoje temos todas estas fontes de energia, e a da fissão nuclear, e também se pesquisa a energia da fusão nuclear, o próximo passo para o progresso humano.

A energia para os “patrícios” estaria hoje disponível para todo habitante da Terra, se tivesse prosperado a situação social da Monarquia romana, entendendo a plebe como parte da sociedade, composta de seres humanos, dignos do mesmo respeito e benefícios que todos os demais. Porém, são os patrícios do século 21 que detêm o poder, as finanças apátridas. Eles querem a volta da escravidão e, para isso, o controle da energia é fundamental.


As “sociedades futuras” e suas energias

Darcy Ribeiro (26/10/1922-17/02/1997), antropólogo e político, gênio brasileiro, escreveu sobre as civilizações e seus futuros. Aprendamos em “O Processo Civilizatório Etapas da Evolução Sociocultural”, primeiro volume dos “Estudos de Antropologia da Civilização”, obra de março de 1968, que já tem início em três idiomas: português, espanhol e inglês, esta última com Prefácio de Betty Jane Meggers (1921-2012).

A influente antropóloga estadunidense deixou registrado uma origem das causas de nosso atraso: “O medo do que possamos descobrir nos impele a rejeitar o exame de nossas crenças mais profundas, mas esse exame é ineludível se quisermos alcançar a compreensão científica do mundo de nossos dias”.

No curso de todas as revoluções tecnológicas registraram-se diversos impulsos acelerativos, responsáveis por mudanças substanciais no processo produtivo e nos modos de vida das sociedades humanas, sem se configurarem como revoluções porque não deram lugar ao surgimento de novas formações socioculturais

Darcy Ribeiro

O homem, escravo do homem, apenas mudou de rótulo, ele assim prossegue desde a descoberta do fogo até a criação dos ubers, dos microempreendedores individuais. As finanças apátridas têm medo desta “descoberta” e fraudam o conhecimento com a “transição energética”, que aqui trata-se.

A questão das energias sujas ou poluentes foi a estratégia das finanças, poder dominante no ocidente durante o século 19, para reconquistá-lo à industrialização que, seja no modelo capitalista seja no socialista, assumiu o poder mundial após as duas grandes guerras na primeira metade do século 20.

A energia fóssil foi a responsável pela ascensão da indústria, o que facilmente se entende no confronto com as demais fontes primárias.


Confronto das eficácias energéticas

O termo “transição energética” traz a ideia de que deixaremos de usar certas fontes para usar outras, geralmente se pressupõe que as piores fontes ficam para trás e as melhores chegam para substituí-las, também é comum assumir que a mudança será rápida.

As transições energéticas são historicamente lentas; as fontes anteriores não são simplesmente substituídas por novas, mas se somam a elas. No passado, energias piores foram somadas a energias melhores, como a biomassa (lenha) ao se somar com o carvão mineral e o petróleo, mas nas futuras transições não existe essa garantia. As melhores energias, mais baratas de serem produzidas, mais concentradas em energia, mais flexíveis e confiáveis, podem ser gradativamente extintas e se somar a energias de pior qualidade.

Há diferenças entre quantidade e qualidade das fontes primárias de energia e aspectos que limitam as energias potencialmente renováveis em cumprir papel histórico equivalente ao das energias de origem fóssil quanto ao desenvolvimento econômico e social.

Seus custos de produção são relativamente mais altos, considerando os custos externalizados pelos seus produtores, como o custo de distribuição, o custo do complemento de suprimento de energia confiável, para compensar a intermitência, além das subvenções diretas e indiretas, tais como os impostos relativamente mais baixos, créditos de carbono, vantagem de acesso prioritário à rede de distribuição e subsídios de capital.

A intermitência na produção é típica das energias eólica e solar fotovoltaica. Os parques eólicos precisam de capacidade instalada maior, caso se pretenda garantir a demanda nos períodos de menor incidência dos ventos. Tanto a eólica quanto a solar fotovoltaica precisam de complemento de fontes confiáveis, tais como fósseis, nuclear ou hidroelétrica, para garantir o suprimento, apesar de sua intermitência.

A energia elétrica não serve para os mesmos fins que os combustíveis líquidos e o carvão. Os combustíveis líquidos de origem fóssil são fundamentais para o transporte de mercadorias e pessoas, navegação e aviação. As atividades industriais de mineração e siderurgia dependem das energias fósseis.

Não se produzem painéis fotovoltaicos, baterias e turbinas eólicas a partir da energia elétrica. Mineração de metais raros, siderurgia e fusão de metais para produção de ligas dependem de energias muito concentradas e de altas temperaturas, ou seja, precisam de fontes primárias de energia com elevada qualidade.

Também a manutenção da rede de distribuição de energia elétrica, com a substituição de cabos de transmissão constituídos por elementos metálicos, depende das energias fósseis.

Os defensores das energias renováveis apontam frequentemente para os fluxos totais de energia para a Terra e proclamam que os recursos de energias renováveis são essencialmente ilimitados. É verdade: estamos rodeados por quantidades incríveis de energia renovável difusa (exemplo: radiação solar e vento). Infelizmente, essa energia é inútil para nós, a menos que seja concentrada em formas como a eletricidade ou os combustíveis.

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A razão é chamada de segunda lei da termodinâmica, ao afirmar que a energia deve fluir da forma concentrada para forma mais difusa, para realizar o trabalho. Toda a nossa sociedade foi construída com base no trabalho realizado através da transformação da energia fóssil concentrada em calor difuso e, para competir, as tecnologias de energia renovável também precisam fornecer essa energia concentrada.

Existe diferença entre quantidade e qualidade das energias primárias. Por exemplo, as energias solar, eólica, das ondas e marés têm densidades energéticas muito baixas, relativamente baixa capacidade de realização de trabalho, elevado custo para suas obtenções, reduzidas facilidades, flexibilidades e confiabilidades para seus usos, além das limitadas temperaturas que podem ser atingidas a partir de suas aplicações.

A densidade energética do petróleo é de 35 a 45 gigajoules (10.000 kWh) por metro cúbico. A energia solar tem densidade de 1,5 microjoules por metro cúbico, mais de vinte quatrilhões de vezes menor do que o petróleo. O vento e a maré têm densidades de energia de 0,5 a 50 J/m³. A qualidade das fontes primárias de energia reflete em seus custos.

Considere o necessário para substituir uma pequena turbina a gás natural, que produz 100 megawatts de eletricidade, suficiente para até 100 mil casas, pela energia eólica. Precisaria de cerca de 20 enormes turbinas eólicas. Para construir essas turbinas são necessárias cerca de 30 mil toneladas de ferro e quase 50 mil toneladas de concreto, juntamente com 900 toneladas de plástico e fibra de vidro para as pás e 540 toneladas de cobre (ou três vezes mais para um parque eólico offshore). A turbina a gás, por outro lado, consumiria cerca de 300 toneladas de ferro, 2.000 toneladas de concreto e talvez 50 toneladas de cobre nos enrolamentos e transformadores. Calcula-se que seja necessário extrair mais cobre nos próximos 22 anos do que em todos os últimos 5.000 anos da história humana, como afirmou Ed Conway (Material World – a substantial story of our past and future).


Ideologia, comunicação e pedagogia colonial

Todo e qualquer poder se mantém pela comunicação. Quanto mais absorvida a mensagem do poder, independentemente da comprovação ou da ética das impregnações, mais fortemente este poder estará assentado na comunidade e mais amplamente influente. As religiões são o melhor exemplo, pois constituem um poder indemonstrável, unicamente imposto pela crença. Vem daí que os sistemas educacionais nas nações começam em igrejas, nos estabelecimentos de culto, nas condições típicas para doutrinações.

O Brasil, do descobrimento à Revolução de 1930, teve na religião católica a única “educadora”. Ainda hoje, mais de 500 anos passados, se identifica, nas manifestações políticas, o inconformismo com a educação “pública, laica, obrigatória e gratuita”. O que se dirá “única”, como no projeto de Getúlio Vargas.

Assim, pela educação, complementada pelas comunicações de massa e pelos exemplos, desde a casa, forma-se a ideologia dominante. Darcy Ribeiro, na obra citada: “Nessas circunstâncias, um pequeno grupo de elite pode apropriar-se da máquina do Estado para conduzir os assuntos nacionais segundo seus interesses e até contar com o apoio caloroso de enormes parcelas da população, suscetíveis de serem ganhas para as teses mais irracionais”.

O neoliberalismo deu um passo ainda maior no processo da alienação do povo; fê-lo acreditar que o Estado Nacional era um erro, que o “mercado” seria o único capaz de promover desenvolvimento, riqueza e felicidade. E, nessa crença, os brasileiros elegeram todos os seus governantes desde a edição da bíblia neoliberal, o decálogo (simples coincidência?) Consenso de Washington (1989).


Energia no Consenso de Washington

A banca, expressão sintética para finanças apátridas, engloba as finanças tradicionais, da aristocracia inglesa do século 18, de prolongada experiência, o saber secular das aristocracias europeias, com as transgressoras, insensíveis e criminosas, sob qualquer legislação, finanças marginais, das drogas, prostituições, subornos e chantagens.

O elo que as une é o da prioridade, sobre qualquer objetivo, da concentração de renda e riqueza, para o que não limitam meios. A energia é fundamental nos caminhos da sociedade, tê-la sob seu controle é, portanto, imperiosa necessidade.

A revolução termonuclear, segundo Darcy Ribeiro, “parece destinada a operar verdadeira reversão do próprio processo evolutivo…. Em lugar de atuar como um processo de atualização histórica espoliador das nações atrasadas, tende a por em movimento novas formas de difusão e de generalização dos progressos tecnológicos culturais. Em consequência, estes não implicarão no estabelecimento de relações de subordinação entre os povos avançados e os atrasados”.

Ao mundo unipolar do Consenso de Washington se contrapõe o multipolar do Cinturão e Rota (Nova Rota da Seda), BRICS, Organização de Cooperação de Xangai e de todas as uniões que se dão com respeito às diferenças entre as partes.


O desafio brasileiro

Pouco antes de falecer, o gênio Darcy Ribeiro nos deixou “O Brasil como Problema” (Francisco Alves Editora, RJ, 1995).

O que nos desafia hoje não é menos do que a história. É a própria evolução. É o próprio processo civilizatório em curso que, entrando num novo ciclo, irá peneirar, uma vez mais, os povos. Uns poucos florescerão, realizando suas potencialidades, porque se incorporarão à civilização emergente, pela via da aceleração evolutiva, através do comando de próprio destino e do domínio autônomo dos novos saberes e das novas técnicas. A maioria dos povos, porém, uma vez mais será meramente atualizada, reflexamente modernizada, para servir aos povos avançados, como seus proletários externos. Serão os contemporâneos não coetâneos do futuro, como nós somos hoje.

Vivemos a crise ética, não fossem os capitais marginais nossos tutores, a crise política, onde a questão nacional deixa de existir em favor de questões identitárias, a crise do direito que trocou a lei pela elaboração da cúpula de um “direito justo” e das forças armadas que se esqueceram do castilhismo dos anos 1920 e se afundaram na ignorância entreguista do bolsonarismo.

Porém, já se veem, aqui e ali, numa manifestação de deputados, numa decisão em primeira ou segunda instância, numa manifestação de cientistas, tecnólogos, intelectuais que o Brasil não se sepultou. Não tem, no entanto, capacidade de comunicação, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel da informática brasileira morreu no nascedouro.

Denunciar a transição energética como retrocesso civilizatório é o que se espera de todo brasileiro patriota. Pois, a realidade, fora dos discursos impositivos e falaciosos, é voltar à situação anterior à revolução industrial com tecnologias contemporâneas, ou seja, contar com as intermitentes energias do sol e dos ventos, com as cada vez mais disputadas fontes de água, para gerar eletricidade com a escravidão, denunciada por Darcy Ribeiro.

Felipe Coutinho, engenheiro químico, vice-presidente da AEPET – Associação dos Engenheiros da Petrobrás;

Pedro Pinho, administrador aposentado, atual presidente da AEPET

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