Três perguntas: a CVM e o ressarcimento de prejuízos de investidores

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Maria Elisa de Castro Meneguelle Valtão (foto divulgação)
Maria Elisa de Castro Meneguelle Valtão (foto divulgação)

No final de junho, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou a Resolução 38, que redefiniu “de forma temporária e em caráter experimental, o prazo e as competências para a decisão da CVM quanto a recursos de decisão proferida em relação ao mecanismo de ressarcimento de prejuízos” de investidores. Essa resolução fez alterações na Instrução CVM 461 de 2007, que disciplina os mercados regulamentados de valores mobiliários.

Conversamos sobre as alterações feitas, e a forma como elas foram conduzidas, com Maria Elisa de Castro Meneguelle Valtão, advogada de direito societário do escritório Abe Giovanini Advogados.

 

Como funcionava o mecanismo de ressarcimento de prejuízos antes da mudança e como ele vai funcionar a partir de agora?

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Conforme a ICVM 461, a entidade administradora de mercado de bolsa tem a obrigação de manter um mecanismo de ressarcimento de prejuízos dos investidores. A finalidade desse mecanismo simplificado é assegurar aos investidores o ressarcimento de prejuízos decorrentes da ação ou omissão de pessoa autorizada a operar, ou de seus administradores, empregados ou prepostos, em relação à intermediação de negociações realizadas na Bolsa ou aos serviços de custódia.

Hoje, se o investidor se sentir lesado por alguma ação ou omissão na intermediação de negociação ocorrida na Bolsa ou aos serviços de custódia, poderá acionar esse mecanismo de ressarcimento perante a Bolsa. Caso o seu pedido de ressarcimento seja negado, pode apresentar recurso à CVM. Até a data da elaboração da Resolução CVM 38, cabia ao colegiado o julgamento dos referidos recursos no prazo de 90 dias.

As autarquias do sistema financeiro ao redor do mundo estão adotando novas medidas regulatórias, por meio de um experimentalismo jurídico, no sentido de flexibilizar e mesmo dispensar normas em determinados contextos controlados (a exemplo do sandbox regulatório), alterando o paradigma normativo em prol da inovação. No caso concreto, porém, a alteração proposta na Resolução CVM 38, de 29 de junho 2021, traz uma experimentação controversa: (i) a dilação do prazo de 90 dias para 180 dias para a utilização do mecanismo de ressarcimento de prejuízos na bolsa, bem como (ii) a criação de condicionantes para a apreciação de recurso pelo colegiado da autarquia.

Nesse sentido, estabeleceu como regra o julgamento desses recursos pela Superintendência de Relações com Mercado e Intermediários (SMI) da autarquia, sem direito a recurso ao colegiado. Caso a SMI conclua pela procedência integral ou parcial do recurso, ou caso o recurso envolva aspecto inovador ou entendimento ainda não pacificado sobre a matéria, logo o colegiado da CVM será competente para a análise do recurso.

Em resumo: além de dobrar o prazo de análise, a SMI entra como um novo agente na decisão do recurso, para lhe negar provimento ou como um novo juízo de admissibilidade ou filtro nos demais casos, quais sejam, o indício de provimento parcial ou integral, matéria não pacificada ou existência de aspecto inovador. Apenas nesses casos aparentemente residuais é que o colegiado ficará com a última palavra.

Importante ressaltar que a alteração é de cunho procedimental, não alterando o escopo das matérias que são passíveis do mecanismo de ressarcimento de prejuízos na Bolsa.

 

Como você avalia as mudanças feitas pela CVM na Instrução Normativa 461?

A meu ver, trata-se de uma medida contraproducente e que subverte a lógica formal do direito de uma forma danosa.

O que chama a atenção é que a autarquia realiza a modificação “experimental e temporária” da instrução normativa por meio da edição da Resolução CVM 38 em paralelo. Não houve, portanto, uma alteração formal dos dispositivos da ICVM 461, sendo que a princípio ambos os dispositivos coexistem – o que em si já é incoerente.

Em matéria de alteração de instrução normativa, é imprescindível a realização de uma audiência pública, não sendo passível a sua alteração por meio de resolução paralela.

Então para que serve uma resolução? As resoluções são atos administrativos normativos que partem de autoridades superiores (como a CVM), tendo como fim explicar ou complementar uma norma precedente. Isso quer dizer que a Resolução visa esclarecer pontos eventualmente obscuros, não podendo criar regras que inovem ou contrariem essa norma preexistente. Ou, pelo menos, assim deveria ser.

No caso concreto, além da resolução alterar materialmente o conteúdo da ICVM 461, ela conflita com o Regimento Interno da CVM, pois atribui novas competências ao SMI, (i) de natureza decisória definitiva nos casos que julgue a demanda improcedente, não cabendo recurso ao colegiado e (ii) como juízo de admissibilidade/filtro dos casos de competência do colegiado.

É importante relembrar a lição da Lei 9784/99: são indelegáveis (i) a decisão de recursos administrativos e (ii) as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade. Logo, considerando que é competência exclusiva do colegiado apreciar matérias de cunho decisório, não me parece correto que a competência do julgamento desses recursos seja delegada para outro órgão, ainda que integrante da autarquia e ainda que essa delegação seja parcial.

Outro ponto de atenção é a questão da não possibilidade de recurso ao colegiado nos casos que a SMI julgue improcedente. Há dois problemas de ordem prática nessa situação. O primeiro problema é de transparência, pois, diferindo a competência no julgamento desses recursos, não será possível ter acesso ao teor do julgamento e razões de decidir no caso da improcedência do recurso decidida pela SMI, o que dificulta a criação de uma cultura de precedentes. O segundo problema é de ordem processual, pois há uma mitigação do seu direito de petição ao impossibilitar o recurso pelo colegiado, que é o órgão competente em matérias decisórias.

Além disso, a autarquia elabora a referida resolução de suposto caráter temporário e não menciona um prazo razoável para sua vigência durante esse “experimento”. A CVM é uma autarquia conhecida por seu caráter técnico, mas isso não justifica que possa exceder no seu poder normativo e passe a dispensar o procedimento de audiências públicas por meio da utilização de resoluções supostamente experimentais.

 

A CVM alegou um crescimento significativo do número de recursos de ressarcimento recebidos pela autarquia, mas não apresentou números. Como você viu essa questão?

A resolução traz uma solução interessante, considerando a capacidade de processamento da autarquia, mas não resolve o gargalo dos problemas encontrados que alega na frase genérica e curiosa referente ao “aumento no número de pedidos de ressarcimento”. A CVM visa implementar essa mudança de uma forma heterodoxa, sem ouvir demais membros da sociedade civil por meio de uma audiência pública, implementando a alteração de procedimento recursal, que é uma matéria que exige maior higidez e previsibilidade.

O meu questionamento é: se aumentou o número de pedidos de ressarcimento, por que o procedimento de análise será diferido, burocratizando seu procedimento de análise e ainda dobrando o seu tempo de apreciação?

O mecanismo de ressarcimento de prejuízo é um importante instrumento na defesa dos interesses dos investidores, ainda mais em um cenário em que a CVM afirma que aumentou o número de recursos na autarquia e não apresenta uma justificativa além da “eficiência administrativa da CVM e aumento do número de investidores”. Se há um aumento no número de casos, é necessário investigar o que está ocorrendo, com base em dados para verificar a natureza desses recursos e as decisões da autarquia.

Essa forma de alteração da instrução normativa pela resolução da CVM pode ser vanguardista pela sua forma de processamento, mas é questionável quem de fato ela beneficia, bem como a qual propósito realmente serve. O investidor que não é.

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