Três perguntas: a legislação de recuperação e falência de empresas

Por Jorge Priori.

1028
Marcelo Godke (foto divulgação)
Marcelo Godke (foto divulgação)

Em dezembro de 2020, a Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência de empresas, foi atualizada pela Lei 14.112. Diante de um quadro econômico complexo gerado pela pandemia, que pode agravar a situação financeira de algumas empresas, conversamos com o advogado, doutor e professor Marcelo Godke sobre a sua avaliação sobre as mudanças trazidas pela Lei 14.112, se a atual legislação tem apoiado a recuperação das empresas e sobre as dificuldades enfrentadas por micro e pequenas empresas para utilizarem essa legislação.

 

Como você avalia as mudanças trazidas pela Lei 14.112 de 24/12/2020?

A reforma que foi feita na Lei de Falência e Recuperação foi bastante ampla. Ela toca em aspectos bem variados do processo, principalmente de recuperação judicial. Reclamava-se muito sobre um fenômeno tributário esdrúxulo gerado por uma interpretação da Receita Federal quanto ao abatimento do estoque da dívida de uma empresa, processo conhecido como haircut (em português, corte de cabelo).

Espaço Publicitáriocnseg

Para a Receita, um abatimento de dívida seria equivalente a uma receita, o que claramente era equivocado. Uma receita tem que entrar no caixa da empresa. Um abatimento de dívida é uma despesa que deixa de existir, que não sai do caixa da empresa. A Receita Federal entendia que isso era uma receita tributável, e apesar de os credores darem descontos para negociação das dívidas, a carga tributária da empresa aumentava.

Isso era bastante ruim para a empresa que estava em recuperação judicial, pois em vez de pagar menos impostos, ela tinha que pagar mais. Isso não fazia o menor sentido. Esse pleito era antigo, mas o Ministério da Fazenda, independente do governo, era contra mudar essa interpretação. Na nova lei, foram aprovadas medidas para evitar a tributação do haircut. Isso foi vetado pelo presidente da República, mas os vetos foram derrubados pelo Congresso. Hoje, não se pode mais tributar o abatimento da dívida.

Outra preocupação era com relação ao financiamento da empresa em recuperação judicial. Não havia muitas garantias para proteger o financiador que entrava depois da recuperação. A lei facilita a concessão de garantias para que sejam obtidos os empréstimos, principalmente na modalidade DIP Financing (Debtor-in-possession financing; em português, financiamento do devedor em posse). Por exemplo, o devedor tem uma máquina e vai continuar tendo a posse daquela máquina para exercer suas atividades normalmente.

Quando a Lei de Falência e Recuperação entrou em vigor, nós tivemos uma mudança de paradigma muito importante pois ela acabou com a concordata. Esse instrumento tinha uma previsão judicial para que se fizesse um parcelamento da dívida num prazo rígido.

Um juiz concedia a concordata desde que alguns requisitos fossem constatados no pedido feito. É por isso que se dizia que era um favor judicial concedido pelo poder judiciário para empresas em dificuldades. Na prática, isso criou uma indústria da concordata onde as empresas utilizavam esse instrumento para esvaziar o patrimônio da sociedade. Poucas se restabeleciam.

Com a Lei 11.101/2005, as empresas passaram a ter uma possibilidade maior de recuperação econômica. Essa recuperação não vem por favor judicial, e sim por meio de negociação. O devedor apresenta um plano de recuperação com corte de dívidas, postergação de prazos e redução de juros, cabendo a ele negociar sua aprovação em uma assembleia de credores.

A ideia de que cabe ao mercado dar uma solução foi reforçada pela Lei 14.112/2020 pois ela trata da utilização da mediação judicial como um instrumento para solução de problemas. Existem juízes que dizem que o Judiciário, em tese, não está aparelhado para desempenhar esse papel. Outros dizem que o Judiciário está se preparando para fazer essas mediações e desempenhará bem tal papel. Outro aspecto que reforça a ideia de que o mercado é responsável pela solução do problema é que os credores poderão apresentar mais facilmente um plano alternativo de recuperação na assembleia geral de credores.

Um último aspecto é que se criou um procedimento internacional de cooperação entre os judiciários de vários países em casos de falências e recuperações judiciais de empresas multinacionais. Não havia esse procedimento na lei brasileira, que já existe na lei americana há pelo menos uma década. A nova lei facilitou o reconhecimento de uma decisão de um juiz estrangeiro no Brasil e vice-versa.

 

Na sua opinião, a atual legislação tem apoiado a recuperação das empresas?

Infelizmente, eu não tenho dados estatísticos, mas a impressão que tenho, com base em testemunhos do mercado, é que se compararmos a antiga concordata com a atual recuperação, a dinâmica procedimental melhorou muito, e algumas empresas, não todas, conseguem efetivamente se recuperar. A Lei 11.101/2005 era rígida em alguns aspectos e a sua interpretação dada pelo Judiciário era no sentido de mitigar alguns desses preceitos. Por exemplo, a lei dizia que alguns dos seus prazos eram improrrogáveis, mas eles acabavam sendo prorrogados pelo Judiciário (exemplos: artigo 6º, parágrafo 4º, e artigo 53º). Isso acabou facilitando um pouco a vida das empresas em dificuldade financeira.

Dito isso, não faz parte da cultura do brasileiro ficar muito contente ao pedir a recuperação judicial pois acredita-se que isso demonstra fraqueza. Como os empresários têm uma resistência muito grande em pedir a recuperação no momento anterior, eles acabam deixando para pedi-la muito tarde, quando não há mais tempo para salvar a empresa dada a proporção da crise. Apesar desse aspecto cultural, a Lei da Falência e Recuperação tem ajudado sim.

 

As micro e pequenas empresas podem solicitar recuperação judicial? Quais são as dificuldades que elas mais encontram nesse tipo de processo?

Sim, elas podem pedir. Por conta das dificuldades naturais que as micro e pequenas empresas passam, por possuírem faturamento menor, elas não têm condições de arcar com os custos normais de uma recuperação de uma empresa média ou maior, que envolvem, por exemplo, a remuneração do administrador judicial, o pagamento de advogados e a preparação de um plano de recuperação que acaba sendo complexo e caro.

Por isso a lei tem um procedimento específico para micro e pequenas empresas, mas que não é muito utilizado por causa da sua rigidez. Ele lembra, até certo ponto, a antiga concordata. Esse procedimento tem um prazo de até 36 meses para pagamento da dívida. Se a dívida não for paga dentro desse prazo, a empresa acaba falindo, mesmo que houvesse condições para parcelar a dívida em até 72 meses, por exemplo. O prazo de 36 meses acaba inflexibilizando e tornando pouco útil a recuperação judicial de micro e pequenas empresas.

Eu já vi uma pequena empresa pedindo a recuperação judicial normal para parcelar sua dívida em dez anos, e não em três. Seria necessário, e isso acabou sendo alterado em parte, um procedimento um pouco mais sofisticado desde que ele desse um pouco mais de flexibilidade. Se esse procedimento não for muito caro, as micro e pequenas empresas vão utilizá-lo, mas, infelizmente, isso não foi feito. A alteração ficou um pouco a desejar. Vamos ver o que acontece, se essa pequena reforma vai facilitar a vida das micro e pequenas empresas. A impressão que eu tenho é que não. Vamos aguardar pois quem dirá isso é o tempo.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui