Em fevereiro deste ano, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deu início à audiência pública SDM 01/2021 com o objetivo de alterar a Instrução 480/09 para criação do comunicado sobre demandas societárias. A CVM acredita que “os deveres de comunicação hoje existentes não são suficientes para dar aos investidores das companhias abertas visibilidade adequada acerca de demandas envolvendo a companhia investida”.
No final de maio, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou o parecer favorável à proposta da CVM. Sua relatora, a advogada e professora doutora de Direito Societário na PUC-Rio Teresa Cristina Pantoja viu a iniciativa como bem-vinda e muito importante, mas fez uma crítica quanto ao fato da CVM ter deixado de fora da proposta de alteração os acordos feitos em câmaras arbitrais: “Não há razão para que a minuta de alteração da Instrução 480/2009 estabeleça que devam ser respeitados os estatutos e regras dos centros de arbitragem.”
Segundo Teresa, “se algum centro ou câmara de arbitragem exige que o procedimento seja totalmente confidencial, isso apenas significa que a arbitragem de problema societário ligado a uma empresa aberta não deve ser levada a cabo neste ou naquele centro que faz tal exigência”.
No edital, a CVM havia dito que “a previsão de sigilo contida nos regulamentos de muitas câmaras arbitrais é inadequada, quando não incompatível com a resolução de certos conflitos de mercado, mas a CVM não possui competência para, por meio de sua regulamentação, avançar nesse debate”. Conversamos sobre este tema com Teresa.
Como você avalia a transparência das companhias abertas em relação a seus acionistas?
Na minha opinião, a chamada “transparência” das companhias abertas ainda é bastante insuficiente. Por esta razão, considero essa iniciativa da CVM importantíssima e muito corajosa. É mesmo necessária a edição de uma instrução normativa atualizada e mais abrangente para compelir as empresas abertas a divulgarem os litígios em que se encontram envolvidas, em processos arbitrais.
Qual é a sua opinião sobre a proposta de reformulação da Instrução 408/2009 feita pela CVM?
A proposta de reformulação feita pela CVM é excelente, e, como já enfatizei, muito corajosa, pois há todo um setor que se opõe a esse tipo de divulgação do contencioso sub judice em sede de arbitragem. Sabe-se que há diversos aspectos do dia a dia das sociedades abertas e de sua contabilidade que são obscuros para muitos. Mas o fato de serem sociedades que fazem apelo à poupança particular – pois emitem valores mobiliários no mercado – as torna responsáveis por revelar suas informações de modo didático e amplo.
A minuta de instrução divulgada pela CVM distingue entre as informações relevantes, tais como já definidas pelas normas de mercado, e aquelas relativas ao contencioso arbitral. Na proposta, fica a encargo dos gestores das empresas abertas avaliarem até que ponto se torna importante divulgar um desses litígios. Ou seja: em última análise, a CVM leva em conta a avaliação que é feita pelos gestores.
Convém que se note que usualmente as câmaras e centros de arbitragem – e até mesmo a Câmara de Comércio Internacional, sediada em Paris – procuram obstar a que se revele o conteúdo de um procedimento arbitral.
Há aí vários aspectos. Contrariamente ao que ocorre no juízo estatal, os árbitros e os experts ou peritos de um procedimento arbitral podem eventualmente ser responsabilizados por uma decisão errônea, ou por uma decisão que tenha sido motivada por razões menos nobres. Embora isso seja raríssimo de ocorrer, essa é todavia uma característica que distingue, em vários sistemas jurídicos, a decisão de um tribunal estatal da decisão de um tribunal arbitral. Talvez até por este motivo haja uma regra expressa sobre o sigilo, na grande maioria dos centros de câmaras de arbitragem.
Mas o que importa, para o acionista ou debenturista da empresa aberta, é poder saber as perspectivas de lucratividade de seu investimento. Assim, ele pode pesquisar nos tribunais de um ou de outro local, sobre se existe algum contencioso de vulto, apto a impactar desfavoravelmente os resultados da empresa em que aplicou dinheiro. Ressalvadas algumas situações excepcionais, usualmente, em diversos países, os procedimentos judiciais são de conhecimento público. Já os procedimentos arbitrais, não.
Embora eu não ache que todos os problemas possam ser solucionados com a instrução que a CVM pretende editar, porque é difícil mudar uma cultura de sigilo já arraigada, acho, contudo, que é muito bem-vinda a edição dessa nova regra, que coincide com a orientação da OCDE e que tem por objetivo principal a democratização da informação.
Discute-se em diversas câmaras e centros de arbitragem no Brasil e no exterior se o inconveniente consistiria preponderantemente na divulgação da existência do contencioso, mais do que a extensão do litígio propriamente dita.
Em minha avaliação, embora já tendo dirigido um renomado centro de arbitragem e participado como árbitro em arbitragens, considero que o sigilo é essencialmente prejudicial e só contribui para a ocultação de atos e fatos que convém ao mercado investidor conhecer. Por outro lado, quando alguns argumentam que a complexidade das relações empresariais atuais impede que terceiros, não tão bem informados, tenham utilidade para esses dados, parece-me uma tentativa de condenar o mercado investidor a permanecer ingênuo, ignorando a realidade. Isso não serve a ninguém.
Como você tem visto a questão das arbitragens que envolvem as empresas de capital aberto?
Eu penso que o momento atual é o da valorização da informação e do acesso a ela. Mais do que nunca, tem-se não apenas o desenvolvimento tecnológico, permitindo uma série de mecanismos novos de compartilhamento de dados, como também a flexibilização de uma série de sistemas jurídicos e regras legais para permitir-se o compartilhamento de informações.
E esse movimento já não é nem tão recente. A criação da Wikipedia, os Commons, tudo isso vem caracterizando uma gradual flexibilização do direito de propriedade intelectual, que, à semelhança do que ocorre com o direito de propriedade em geral, vem sendo renovado com os conceitos de multipropriedade, com os “Airbnb” e congêneres. Não há como negar que a tecnologia da comunicação suscita todo um movimento de maior sustentabilidade e de maior flexibilidade – ou articulação – dos direitos em geral.
E o mercado de valores não escapa a essa flexibilização. Não dá mais para pretender-se que o investidor comum se situe num patamar intelectivo inferior, sendo incapaz de compreender o que se passa num conflito, num litígio. Ele ou ela têm o direito de saber. Se isso provocar oscilações no valor das ações ou dos títulos das companhias abertas, que provoque. Esse fato pode incomodar ao acionista controlador, mas será benéfico a longo e médio prazos, como ocorre com toda democratização, pois se aperfeiçoará o conhecimento, o entendimento.
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