Tributos: a experiência espanhola

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É evidente que as diferenças geográficas, econômicas, político-administrativas e histórico-culturais entre Brasil e Espanha tornam inapropriado pensar sequer em copiar instituições ou adotar aqui, no todo ou em parte, os sistemas tributários estudados. No entanto, faz todo sentido comparar os sistemas, num exercício que pode fertilizar a imaginação da Comissão Especial que elabora, na Câmara dos Deputados, a nova reforma tributária.
Merece destaque especial a estrutura da Agência Tributária espanhola. A Agência, cuja função é apenas arrecadar os principais impostos do país, goza de autonomia administrativa e financeira, evidentemente dentro de um orçamento previamente aprovado. No entanto, não interfere na formulação da política tributária. Esta fica a cargo exclusivo do Ministério de Economia e Fazenda da Espanha e das autoridades fazendárias das Comunidades Autônomas (equivalente aos estados brasileiros, na estrutura “semi-federal” do Estado unitário espanhol). Tal idéia é objeto também de emendas à PEC 175, de autoria de deputados que desejam dar maior funcionalidade à arrecadação de impostos, no Brasil, separando tal função da formulação da política tributária.
A Espanha é um Estado peculiar do ponto de vista político-administrativo. Não é uma federação, mas também não segue o modelo clássico de país unitário, como a França. A democratização pós-Franco criou as chamadas Comunidades Autônomas (CCAA), entes jurídicos que equivalem aos estados brasileiros, porém sem o mesmo grau de autonomia.
Uma das dificuldades para entender o sistema político-administrativo-tributário espanhol está no fato de que há diferentes status jurídico-políticos para as CC AA, decorrência do processo histórico daquele país. Três delas são chamadas forales , o que significa que têm mais autonomia que as demais. É o caso do País Basco, Navarra e a Catalunha. Entre as três, porém, também há diferenças essenciais.
O País Basco e a vizinha Navarra exercitam praticamente todas as funções governamentais com sua própria estrutura, ficando reservado ao governo nacional espanhol apenas as funções de justiça, defesa do território basco e navarro, bem como de representação externa dos interesses de seu povo. Em contrapartida, estas duas comunidades arrecadam todos os impostos, inclusive os de Renda e sobre o Patrimônio, e repassam uma parte (pequena, é verdade) destes últimos para o governo central.
Já a Catalunha, comunidade cujas aspirações de autonomia são verberadas mais fortemente, não tem a mesma competência arrecadatória ampla, limitando-se a coletar os mesmos impostos que são de competência das demais CCAA espanholas.
Outra consideração importante é que o sistema tributário espanhol está sob condicionamento supra-nacional, na medida em que este país faz parte da União Européia. Isto quer dizer que os impostos indiretos da Espanha – como de resto dos demais estados-membros – estão em processo de harmonização, isto é, de convergência na direção de uma mesma alíquota e de legislações uniformes, sobretudo para o IVA. O mesmo não se aplica aos impostos diretos (renda e patrimônio), cujas alíquotas podem ser fixadas por cada país membro da UE a sua discreção.
O Estado espanhol tem capacidade normativa completa sobre todos os impostos relevantes, inclusive os compartilhados com as comunidades autônomas e as prefeituras (ayuntamientos). O Estado Espanhol incorpora também as chamadas Províncias, que são unidades político-administrativas intermediárias entre os municípios e as CCAA, herdadas da organização política anterior, mas sem funções públicas relevantes. Sem capacidade impositiva própria, as províncias são financiadas por adicionais (recargos) de 40% sobre o imposto municipal sobre Atividades Econômicas (IAE). Do total arrecadado das pessoas físicas, 80% provêm dos rendimentos do trabalho! O Imposto sobre Sociedades (o IRPJ), que contribui com cerca de 1,8 bilhões de pesetas (ou quase US$ 12 bilhões), corresponde a 13,2% do total de impostos arrecadados. Além destes, a Espanha cobra imposto sobre o estoque de fortuna das pessoas (Patrimônio), o qual gera 0,25% da arrecadação total de impostos.
Cotejado com o Brasil, onde só 27% do total de impostos provêm da taxação da renda, a situação da Espanha – como de resto toda a Europa e os EUA – mostra como estamos atrasados em matéria de justiça tributária. Aqui, 60% da renda tributária são gerados na taxação do consumo (ICMS, IPI e ISS), tributos indiretos que todos pagam, igualmente e independente do nível de renda, e os restantes 13% são gerados pelos impostos sobre o patrimônio (IPVA, IPTU, ITBI e ITCD) e as transações financeiras. Para comparar-se aos impostos sobre consumo pagos no Brasil com os correspondentes cobrados na Espanha, vale registrar que lá o IVA representa apenas 30,8% e os Impostos Especiais 16,2% do total arrecadado (de impostos). Ou seja, uma carga bem menor de tributos indiretos.
Observe-se, também, que a Espanha – com cerca de metade do PIB brasileiro e um quarto de nossa população – arrecadou US$ 47 bilhões somente de impostos sobre a renda, enquanto nós, apenas, US$ 35 bilhões, demonstrando que algo está muito falho e errado no sistema de cobrança deste imposto no Brasil.
Em função da insuficiência do modelo organizativo anterior dos órgãos encarregados da arrecadação de impostos na Espanha – que tinha problemas de política de pessoal, resolvidos através de gratificações não diretamente retributivas, de rigidez orçamentária e falta de flexibilidade – resolveu-se criar, em 1986, a Agência Tributária. Órgão de direito público, com plena capacidade jurídica, pública e privada, a AT é integrada á Administração Central do Estado, subordinando-se à Secretaria de Estado da Fazenda, do Ministério da Economia e da Fazenda.
A função institucional da AT é a aplicação efetiva e eficaz dos sistemas tributário estatal e aduaneiro, sem competência porém sobre o desenho destes sistemas. O objetivo da AT é arrecadar, o que se procura alcançar através de linhas estratégica e operacional, consistentes em: melhorar os níveis de cumprimento voluntário das obrigações fiscais, por parte dos contribuintes, facilitando-lhes esta tarefa, bem como reforçando a luta contra a fraude fiscal.
O orçamento anual da AT é de US$ 870 milhões, empregando 27 mil pessoas, dos quais 90% são funcionários públicos e o restante trabalhadores contratados. Deste contingente total, cerca de 14 mil pessoas estão envolvidas nas áreas de Gestão , Informação Tributária e Outras, enquanto 13 mil estão dedicadas à Inspeção, Arrecadação e Serviço de Alfândega (Aduana).
A Agência tem autonomia para a política e gestão de seus recursos humanos, os quais estão especializados em matéria tributária e dentro de uma carreira profissional. Só excepcionalmente o pessoal ingressa por livre nomeação, sendo a quase totalidade dos postos preenchidos por concurso público.
Cuidando dos impostos que representam 98% da arrecadação total ( IRPF e PJ, IVA e Impostos Especiais), desde a criação da Agência o número de contribuintes quase dobrou de 8 para 15 milhões, entre 1986 e 1998.
A AT gere o ingresso de tributos no valor bruto total de US$ 111 bilhões, dos quais cerca de US$ 20 bilhões são devolvidos aos contribuintes. Atende individualemente, a cada ano, a 7 milhões de contribuintes. Para tanto dispõe de considerável parque de informática, com grande articulação com o sistema bancário espanhol, que serve para a arrecadação voluntária e como canal para efetuar as devoluções. Segundo os dirigentes da Agencia, seu custo de gestão tributária é bastante baixo, da ordem de 0,9% da receita de impostos que arrecada.
As CCAA espanholas participam do financiamento da AT, com pouco menos de 10% de seu orçamento, tendo em conta que a Agência arrecada impostos cedidos às mesmas.

Luiz Alfredo Salomão
Membro da Comissão Especial da Reforma Tributária, integrou missão parlamentar que acaba de visitar Espanha e Alemanha.

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