Água, direito líquido e certo

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Diariamente, morrem no Brasil 20 crianças por falta de saneamento. São 7.300 por ano. E os horrores prosseguem: 21% dos domicílios brasileiros não têm água e 55% são carentes de esgoto. No Rio de Janeiro, apenas 56% das residências estão ligadas à rede de esgotos. Em Minas, por exemplo, o conforto é mais expressivo: 80,96%. Transportemo-nos através do Atlântico para informar que até o início dos anos 70 a maior parte dos rios dos Estados Unidos conduziu esgotos “in natura”. Só em 1972, com o “Clear Water Act”, que essa situação melhorou. Em nosso país, a Lei 9433, de 1997, corre em rio seco para fazer-se acatada. Contudo, temos a ANA (Agência Nacional de Águas), que engatinha proposições, tornando-se, quem sabe, dentro de algum tempo, relevo de uma opção.
Desfilemos, ainda mais, nosso rol de agruras: dos esgotos coletados, somente 10% têm tratamento. Os 90% restantes são despejados nos rios, lagoas e praias, poluindo demasiadamente, levando o Brasil, nessa área, e em outras que ninguém desconhece, a uma desletrada escuridão.
K.A. Wittfogel, em Oriental despotism. A comparative study of total power, de 1957, defende a tese segundo a qual a direção, em larga escala , das obras agro-hidráulicas pelo Estado conduz ao aumento da burocracia e do despotismo, nominando a China, por essa razão, “estado hidráulico”, querendo significar despótico…Quem controla através das ferramentas do suplício, que nome tem? Wittfogel terá ido longe demais em suas afirmações?
O Brasil de hoje, o que é? País dirigido por Medidas Provisórias, atrelado ao jugo fernandiano, com seu agarre suntuoso à vaidade empedernida, à grandeza arquitetural do cargo, é mais ou menos despótico? O sequestro diário do social, os impostos que escarafuncham os bolsos magros dos brasileiros, as deslavadas mentiras lançadas diuturnamente no rosto da população sofrida, o que quer dizer? Apenas desapreço por ela, apontando-nos os escolhos pontiagudos de uma política ferrenhamente entreguista. Fiquemos ainda na América do Sul, a título de exemplificação.
Na província de Tucuman (Argentina), os serviços de Saneamento Básico, Água e Esgotos, privatizados em 1995 – primeira privatização na América Latina – causaram elevação brutal de tarifas, e a péssima qualidade dos serviços provocou verdadeira rebelião popular, voltando os mesmos para o poder público.
É preciso redirecionar a política econômica do país, que tem como prioridade pagar juros elevados ao capital financeiro, gerando endividamento crescente do setor público e aprofundando a recessão com enormes custos sociais. Crescer pouco para outros cresçam elefantinamente? É assim?
As iniciativas de privatização do setor de saneamento são reflexos da política de desmonte do Estado Brasileiro e do descomprometimento do Governo Federal com a efetividade social das políticas públicas, pois sabe-se bem que elas não apontam para a universalização dos serviços de saneamento, mas para o abandono à própria sorte das populações pobres e desassistidas.
Documento elaborado pelo Banco Mundial sugeriu que o governo brasileiro tire poder dos municípios com menos de 100 mil habitantes a titularidade dos serviços de água do país. Intromissão intempestiva ou habitualidade de mandar em quem quer ser mandado? A solicitação do governo ao Banco Mundial aconteceu após assinatura do protocolo com o FMI, em 8 de março de 1999, quando o Brasil se comprometeu a preparar “a moldura legal para a privatização a concessão de serviços de água e esgoto”, conforme o item 27 do acordo em epígrafe.
Multinacionais e empresas privadas esperam, de goela escancarada, a regulamentação do setor para aumentar sua participação no mercado, atualmente entregue (95%) aos governos estaduais e municipais.
Metade da água do planeta disponível para consumo – apenas 2,5% do total – se encontra em reservatórios subterrâneos. Um dos maiores do mundo está no Brasil, o Programa Guarani, que pretende proteger e promover a exploração racional dos 45 quatrilhões de litros d”água nele armazenados. O Aquífero Guarani, com 1.194.800 quilômetros quadrados, abrange oitos estados brasileiros e parte do Paraguai, Uruguai e Argentina, estimando-se que receba, anualmente, 166 trilhões de litros.
No Rio de Janeiro, a Cedae tem sua água reprovada pela existência – dizem os técnicos – de coliformes fecais e totais em oito das 38 amostras de água coletadas em 32 pontos do município do Rio de Janeiro, em meados de fevereiro desse ano. Os testes foram realizados pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). A Cedae reage e a briga prossegue no seu leito de mazelas e compadrios mesquinhos e desnaturados. Água é vida. Não é sinônimo de morte.
Temos terra, água, natureza e o homem. Michel Foucault ensina que a natureza não é mais catálogo – como pensavam os enciclopedistas -, mas lençol: pega-se um aponta de tecido e vem tudo: o mundo é liso como uma seda.
Impelidos ao paroxismo da clareza, partamos de uma reflexão emanada de um córtex inteiriço: o que é do Brasil, como a água brasileira, não pode ser levada por mares sempre navegados, em caravelas globalizadas, trazendo, ao vento macunaímico da esperteza, as cem bandeiras que nos avassalam. A água é direito líquido e certo. Vamos bebê-la, nós mesmos, até o fim, nos jardins floridos da brasilidade.

Ricardo Maranhão
Engenheiro, ex-deputado federal é vereador no Rio de Janeiro pelo PSB

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