Uma ‘bancocracia’ chamada Brasil

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Nos últimos dias, alguns fatos evidenciaram inequivocamente, uma vez mais, a extensão do domínio que um pequeno grupo de bancos exerce atualmente sobre os destinos do país. Comecemos pela notícia, que teve ampla divulgação nos principais meios de comunicação no dia 27 de maio, de que os ativos totais sob posse dos cinco principais bancos em operação no Brasil – Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica – alcançaram o impressionante montante de R$ 7,360 trilhões, superando ligeiramente o produto interno bruto brasileiro em 2019, isto é, a soma de todas as riquezas produzidas pelo país no ano passado.

Desse total, R$ 3,31 trilhões representavam empréstimos às pessoas físicas e jurídicas, um acréscimo de R$ 176 bilhões no primeiro trimestre de 2020 em relação a dezembro de 2019 e de R$ 348 bilhões nos 12 meses anteriores. Esse montante produziu uma relação crédito/PIB de 48,9%, o que significa que mais da metade dos ativos daqueles bancos não representava créditos concedidos à sociedade.

Por outro lado, segundo a Febraban, os bancos haviam concedido mais de R$ 540 bilhões em empréstimos desde o início da pandemia da Covid-19, considerando-se empréstimos novos, renovações e postergações de parcelas de antigos.

Vale ressaltarmos, porém, que em março desse ano, o Banco Central apresentou um conjunto de medidas que incluíram a injeção de R$ 1,2 trilhão no Sistema Financeiro Nacional. Com isso, nas palavras do seu presidente Roberto Campos Neto, a instituição pretendia criar um potencial de expansão de R$ 1,160 trilhão no volume de crédito disponível no país – mais de 1/3 do volume total concedido até aquele momento e mais que o dobro do que os bancos alegaram ter fornecido durante a pandemia.

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A princípio, esse fato deveria indicar maior disponibilidade de crédito e custos significativamente reduzidos de endividamento no país. Não obstante, há poucas semanas, o presidente do Itaú, Candido Bracher, afirmou em transmissão pela internet que o volume do crédito no Brasil não apenas não cresceria no mesmo ritmo da demanda como poderia até mesmo cair em 2020, em função da expectativa de que o fornecimento de crédito novo dê lugar às renegociações e reestruturações de dívidas de empresas e pessoas físicas em dificuldades. Afinal, o aprofundamento da crise elevará o risco dessas operações, exigindo maior rigor dos bancos na sua concessão.

Assim, passemos à análise do Boletim Cofin publicado no último dia 28 de maio pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde, com dados referentes ao dia 26 do referido mês.

Quase quatro meses depois da declaração de estado de emergência em saúde pública pelo Governo Federal, no dia 4 de fevereiro, e mais de dois meses depois do reconhecimento pelo Senado do estado de calamidade pública em todo o território nacional, em 20 de março, impressiona a morosidade na liberação dos recursos emergenciais para o combate aos efeitos na produção, na renda e no emprego das políticas de isolamento social adotadas com vistas a desacelerar a contaminação.

Então, segundo o boletim, embora desde fevereiro 19 medidas provisórias autorizando a liberação de até R$ 270 bilhões como diversas formas de auxílio já tivessem sido editadas pelo governo, apenas R$ 110 bilhões, 41% do previsto, haviam sido executados e pagos até aquele momento. Desse total:

R$ 76,4 bilhões haviam sido entregues para pessoas físicas a título de “benefício emergencial”, 45% dos R$ 152,6 bilhões autorizados;

Apenas R$ 5,8 bilhões, dos R$ 51,6 bilhões autorizados, haviam sido pagos como “abono emergencial” para trabalhadores com contrato suspenso ou reduzido, pouco mais de 11% do total previsto;

R$ 17 bilhões, metade dos R$ 34 bilhões previstos, haviam sido entregues aos bancos para o financiamento da folha salarial pelas micro, pequenas e médias empresas. Porém, reportagem do The Intercept Brasil revelou em meados de maio que, até então, os bancos haviam concedido apenas R$ 1,44 bilhão para pouco mais de 61 mil empresas, menos de 5% da expectativa inicial do Banco Central;

Dos quase R$ 34,5 bilhões autorizados para gastos pelo Ministério da Saúde, apenas R$ 8,8 bilhões haviam sido realizados, pouco mais de 20% do total, a despeito das imensas carências de infraestrutura, equipamentos e serviços em diversas partes do país;

Apenas R$ 2 bilhões, dos R$ 16 bilhões disponíveis, haviam sido gastos para compensar as perdas dos governos estaduais e municipais com os seus respectivos fundos de participação, sem que o Governo Federal tivesse até então sancionado a lei de auxílio emergencial aos demais entes federativos.

Vale lembrarmos que muitas dessas ações, como o abono emergencial e o auxílio salarial, previam duração de apenas três meses, o que significa que, pelo menos a princípio, já se aproximavam do fim.

Em rigor, todos esses fatos estão diretamente relacionados entre si e expressam as opções – políticas, como sempre acontece na chamada “economia” – feitas pelo “superministro” Paulo Guedes na administração fazendária do Brasil, opções rigorosamente mantidas durante a atual pandemia.

A primeira e mais evidente fica por conta da gigantesca diferença entre os montantes destinados aos planos de “socorro” ao sistema financeiro e à população: R$ 1,2 trilhão e R$ 270 bilhões respectivamente, uma diferença de quase quatro vezes e meia. Mesmo assim, parte considerável desses R$ 270 bilhões foi repassada aos bancos, tomados como intermediários do auxílio aos pequenos empresários, trabalhadores e desempregados.

Dessa forma, Guedes e a sua equipe privilegiaram o poder daquelas instituições em arbitrar o acesso de dezenas de milhões de brasileiros dos mais distintos extratos sociais ao crédito. O resultado, conforme se verifica, é que apesar do gigantesco reforço de liquidez que receberam das autoridades monetárias, os bancos estão usando a própria crise como justificativa para encarecer ainda mais o dinheiro, justamente no momento em que a população mais precisa dele.

Em outras palavras, com a anuência do Governo Federal, os bancos estão se aproveitando da crise para tornar o dinheiro ainda mais caro e inacessível num país que, há muito tempo, em circunstâncias “normais”, já possui taxas de juros dentre as mais exorbitantes e inaceitavelmente elevadas do mundo.

Por outro lado, obrigado pela força das circunstâncias a ampliar – muito a contragosto – os gastos do próprio governo, Guedes e a sua equipe vêm retendo ao máximo os repasses diretos de recursos à população, assim como a execução dos gastos dos ministérios e demais órgãos públicos no seu atendimento.

As razões disso foram explicitadas na fatídica “reunião ministerial” do dia 22 de abril. Nela, um Paulo Guedes confiante e autêntico, inteiramente despojado de constrangimentos morais, chamou os servidores públicos de “inimigos” a serem destruídos com uma granada e afirmou que “nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.

Enquanto isso, Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica, afirmou que o auxílio às pequenas empresas “não é pra todo mundo não! Aquela empresa que já estava quebrada antes, porque que a gente vai dar molezinha?”, sem esclarecer quaisquer critérios para distinguir as “quebradas” das “saudáveis”.

Portanto, trata-se de uma política deliberada, inteiramente injustificável e danosa, pois compromete os esforços de mitigação dos piores impactos da pandemia sobre a saúde pública e o bem estar da população.

Em resumo, nem mesmo durante a mais grave emergência sanitária em um século, cujas consequências provavelmente lançarão o Brasil na mais profunda crise produtiva, financeira e de emprego da sua história, o Governo Federal admite retirar dos bancos brasileiros o poder crucial de arbitrar o acesso de amplas parcelas da sociedade ao seu meio indispensável de vida.

Curiosamente, a “economia” supostamente neutra e apolítica aplicada por Paulo Guedes, aprendida na mais reputada escola “tecnocrática” de Chicago, revela-se inteiramente como economia política, evidenciando a natureza inegavelmente política das suas opções, do dinheiro e das dívidas.

Instrumentos de controle e dominação social desde a sua invenção documentada na alta Antiguidade, historicamente tem sido exatamente os poderes de arbitrar o acesso ao dinheiro e de regular o endividamento que têm permitido aos seus controladores, governamentais ou privados, manter populações, classes sociais, governos e até mesmo países e continentes inteiros sob o seu comando.

Em suma, se depender de Paulo Guedes e seus colegas, quando o vírus passar, ficarão os juros explosivos e as dívidas, perpetuando uma subordinação sem fim do Brasil e do seu povo à “bancocracia”.

Daniel Kosinski

Doutor em Economia Política Internacional, pesquisador da UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.

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