Uma crise que vem de longe

Crise global atual tem raízes em Bretton Woods e no dilema de Triffin: os limites do dólar e da liderança dos EUA.

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Trump mostra decreto assinado sobre tarifas (Foto de Hu Yousong/ Agência Xinhua)
Trump mostra decreto assinado sobre tarifas (Foto de Hu Yousong/ Agência Xinhua)

A crise causada pela imposição de tarifas, decidida unilateralmente pelo presidente dos EUA, Donald Trump, foi interpretada como uma reviravolta radical e completamente imprevisível. De fato, já no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, o economista belga-americano Robert Triffin, amigo de Jean Monnet e Edmond Giscard d’Estaing, previu a inevitável crise da ordem internacional fundada em Bretton Woods, pelo acordo assinado em 1944 por 45 nações aliadas para organizar a economia mundial no pós-guerra. Em 1959, Triffin testemunhou perante o Congresso dos Estados Unidos e alertou sobre graves falhas no sistema de Bretton Woods. A análise de Triffin foi baseada em poucos fatores, porém fundamentais.

Os Estados Unidos emergiram da Segunda Guerra Mundial em uma posição de supremacia incontestável. As reservas de ouro armazenadas em Fort Knox constituíam uma porcentagem muito alta do total mundial. Isso permitiu que o dólar fosse convertível em ouro. A economia americana ultrapassava 50% do PIB mundial. O exército dos EUA era incomparável, como consequência direta de seu monopólio nuclear. Essas condições garantiram a liderança dos EUA e a afirmação do dólar como moeda de pagamento e reserva internacional. Mas Triffin previu que esse equilíbrio não duraria: nenhum país pode aspirar a ser potência dominante por muito tempo, e nenhuma moeda nacional pode agir de forma estável como moeda internacional. O chamado “dilema de Triffin” envolveu a transição da escassez de dólares — para financiar o comércio mundial — para o excesso deles, produzidos para atender às necessidades da comunidade internacional. Além disso, a busca por atender a demandas internas pode levar a desequilíbrios na balança de pagamentos e a crises de confiança, enquanto a manutenção de reservas internacionais robustas impõe desafios à soberania nacional. A contradição está no uso de uma única moeda nacional como moeda internacional.

No final da década de 1960, a profecia de Triffin foi totalmente confirmada. A crise começou com a criação de um mercado duplo de ouro. Em 1968, o Federal Reserve declarou que não converteria mais os dólares mantidos pelos bancos centrais em ouro, pois esses bancos pretendiam usar o ouro obtido na conversão do dólar para operações de arbitragem entre os dois mercados — público e privado. Em 1972, Nixon declarou o fim das regras de Bretton Woods.

Foi então que Triffin, Monnet e Werner começaram a ver a construção da União Econômica e Monetária Europeia como a única solução possível. A crise do dólar poderia ter minado a estabilidade que permitiu o nascimento do processo de unificação europeia; o mercado interno europeu teria sofrido uma crise mortal na ausência de uma própria moeda. O objetivo parecia impossível, mas era, ao mesmo tempo, indispensável e, portanto, possível.

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As raízes da crise de 2025 estão nesses anos. Porém, as classes políticas dominantes não queriam acreditar na necessidade de questionar a arquitetura econômica, monetária e geopolítica da ordem internacional. A incapacidade de entender mudanças sistêmicas atingiu seu auge durante a crise da URSS e a queda do Muro de Berlim. Esses eventos marcaram o fim da ordem bipolar, fundada na Guerra Fria. A crise do dólar desencadeou a crise da liderança dos EUA, enquanto a queda do Muro de Berlim marcou a crise da liderança da URSS. O duopólio havia terminado.

Isso foi interpretado como uma vitória do Ocidente, a afirmação de uma nova ordem liderada por uma única potência: os Estados Unidos. Na realidade, um novo espaço geopolítico estava se abrindo, disputado por atores emergentes, ávidos por conquistar um papel que lhes havia sido negado por décadas.

Hoje, chegamos ao ponto. A luta pelo futuro da ordem mundial começou. Trump não é a causa da crise. Estamos enfrentando uma crise estrutural, em alguns aspectos semelhante à crise da libra e da liderança britânica no período entre as duas guerras mundiais. Na época, os governos ingleses constrangeram seus aliados, colônias e cidadãos mais fracos a pagarem o preço do seu próprio declínio. Hoje, um cenário semelhante pode se repetir, caso medidas radicais não sejam adotadas. As tarifas, em si, não são o verdadeiro problema.

Os Estados Unidos poderiam vivenciar uma crise interna não ocorrida no caso britânico: uma fratura potencialmente irreparável entre classes sociais e regiões. De fato, um aspecto frequentemente esquecido, mas crucial, é a vulnerabilidade do consenso interno à turbulência do mercado financeiro. Os Estados Unidos são um país profundamente financeirizado, onde uma parcela significativa da população depende do desempenho de fundos de pensão, investimentos indexados e planos de aposentadoria baseados em ações.

Se tarifas e uma desaceleração na globalização levarem a uma redução nas margens corporativas e a uma correção prolongada nos mercados, isso poderá afetar diretamente as poupanças e aposentadorias de milhões de americanos. As consequências não seriam apenas econômicas, mas, potencialmente, políticas e sociais, com aumento do descontentamento, da polarização e da pressão sobre o Executivo — até o risco extremo de guerra civil.

O paradoxo é evidente: perseguir interesses estratégicos nacionais por meio do protecionismo econômico pode minar a estabilidade interna. Em última análise, a transição de uma ordem comercial multilateral, consolidada no período pós-Segunda Guerra Mundial, para uma nova fase de engenharia geopolítica exige não apenas instrumentos econômicos, mas, igualmente, um projeto político capaz de construir consensos, tanto no âmbito nacional quanto internacional.

1 COMENTÁRIO

  1. Uma excelente matéria, é um ponto de vista que necessita ser atentado, inclusive algumas colocações a fazer:
    Em 1990, a reunificação da Alemanha trouxe desafios e oportunidades. A integração da Alemanha Oriental exigiu investimentos pesados, mas consolidou o país como a maior economia da Europa. Esse fortalecimento teve reflexos na União Europeia e no comércio global, tornando a Alemanha ainda mais influente na política econômica internacional.
    Enquanto isso, o Brasil também estava passando por mudanças estruturais na economia. Durante os anos 90, reformas como a liberalização comercial e a redução de barreiras tarifárias ajudaram a estabilizar a economia, embora a inflação e o déficit comercial continuassem sendo desafios. Nos Estados Unidos mantinham políticas tarifárias que impactavam diversos parceiros comerciais, incluindo Alemanha e Brasil. No início dos anos 90, o Brasil ainda estava ajustando sua economia para se tornar mais competitivo no cenário global, enfrentando desafios como inflação e necessidade de modernização industrial.Sendo que Décadas depois, durante o governo Trump, tarifas sobre produtos como aço e alumínio afetaram diretamente exportações brasileiras. Como resposta, o Brasil buscou diversificar seus parceiros comerciais, reforçando acordos com a União Europeia e o Mercosul. Ocorreu que no governo Lula, houve esforços para proteger setores estratégicos da economia brasileira contra os impactos das tarifas impostas pelos EUA. Além disso, o STF desempenhou papel fundamental ao garantir que decisões econômicas estivessem alinhadas com a Constituição e com os interesses nacionais. Essas ações refletem a complexidade das relações comerciais e políticas internacionais, onde cada país busca equilibrar sua posição no mercado global.

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