Uma crise sistêmica

Para os Estados Unidos, o Oriente Médio precisa se manter desestabilizado. Por Fabio Reis Vianna

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Protesto no senado dos EUA contra verba para guerras (foto Xinhua)

Inventado por Theodor Herzl, primeiro presidente da Organização Sionista Mundial, e nascido em meio ao turbilhão de ideologias nacionalistas impulsionadas pelas tensões oriundas da crise sistêmica global da segunda metade do século 19, o sionismo viria a ser a outra face da moeda da ultrajante perseguição que os judeus sofriam no então Império Austro-Húngaro.

Macabra ironia da história em que países outrora pertencentes àquele carcomido império – Hungria, República Tcheca e Polônia (onde judeus eram estigmatizados e perseguidos; o que influenciaria inclusive o movimento nacionalista judaico que levaria a invenção do próprio sionismo) – tenham estado ao lado de Israel em recentes votações na ONU a respeito da conflagração entre Israel e Palestina.

O mesmo nacionalismo antissemita alastrado no leste europeu do século 19 viria a ser o estopim para a criação do nacionalismo judaico de Herzl; irmãos siameses que hoje se encontram na mesma trincheira da extrema-direita global.

Já em franco processo de decadência, o velho Império Habsburgo foi a alegoria mais bem representativa do fim de um período histórico que invariavelmente se daria de maneira trágica, dado o caldo de cultura de ódio que seria o estopim da Primeira Guerra Mundial e onde o panorama maior de uma crise sistêmica global se daria ao lado do vertiginoso aumento da competição interestatal.

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Neste cenário, a Europa, mesmo que não tenha interesse ou relação direta com o que está ocorrendo no Oriente Médio, é o começo e o fim de todos os problemas: não por acaso os ânimos entre europeus não parecem nada calmos.

Maior afetado da crise desencadeada pela invasão russa à Ucrânia, o Velho Continente se vê novamente em meio a uma turbulência que pode afetar diretamente a sua economia e estabilidade interna.

Protestos violentos na França, país com imensa população muçulmana, e a dura reação do governo socialista espanhol ao assédio indevido da embaixada israelense em Madrid são sinais inequívocos de divisão interna no seio da União Europeia, tanto em meio à sociedade, quanto entre os próprios Estados-membros.

A questão Israel–Palestina, que sempre se limitou a ser um conflito regional, ganha proporções até pouco tempo inimagináveis em razão da conjuntura global peculiar.

Benjamin Netanyahu (foto de Wang Zhuolun, Xinhua)
Benjamin Netanyahu (foto de Wang Zhuolun, Xinhua)

Isto se explica, pois aproveitando-se do impasse global aprofundado pela guerra na Ucrânia – fruto do acirramento da disputa hegemônica entre o Ocidente (representado pelos Estados Unidos), a Rússia e a China – Netanyahu, irresponsavelmente, reaviva a sanha expansionista de Israel e inicia mais um capítulo da escalada de competição e instabilidade global iniciada com a crise do coronavírus em 2020.

Por trás de questões locais, portanto, descortinam-se mais uma vez os tentáculos de uma crise sistêmica com camadas bem mais profundas e que a olhos nus parecem pouco compreensíveis.

Neste sentido, seria um erro crasso de análise imputar ao presidente dos Estados Unidos a escolha, ou não, de decidir o momento eleitoral oportuno para entrar em uma guerra, ou começar uma escalada militar.

Os Estados Unidos precisam da guerra infinitamente para se manterem no topo de um sistema interestatal que é hierárquico, competitivo e bélico desde o princípio. E mesmo se formos analisar pelo mero aspecto eleitoral, a própria sociedade americana funciona na lógica da guerra e sempre se une a favor do presidente de plantão quando a narrativa indica o inimigo externo comum.

Nesta linha de raciocínio, os próprios discursos recentes de Biden sinalizam para uma repetição de outros momentos em que o poder americano, se vendo numa encruzilhada histórica, é empurrado para um salto expansionista eminentemente militar.

O problema agora é que, pela primeira vez desde que assumiu a condição de potência mundial no pós-Segunda Guerra, os Estados Unidos se veem confrontados diretamente por outras potências questionadoras das regras impostas e tuteladas por ele mesmo.

Ao longo da história do sistema mundial, todas as potências hegemônicas – sem exceção – em algum momento iniciaram guerras mesmo em situações de paz pela simples necessidade de seguir expandindo seu poder e evitar o surgimento e fortalecimento de competidores. Espanha, França e Inglaterra fizeram isso entre os séculos 15, 18 e 19.

Se olharmos o que está ocorrendo no Oriente Médio sob a ótica da longa duração – ou seja, sem entrar no mérito das razões locais do conflito – perceberemos que o que está acontecendo dialoga com o interesse direto do atual hegemon de que não haja qualquer pacificação regional que favoreça os interesses do seu competidor-adversario direto: a China.

Para os Estados Unidos, o Oriente Médio precisa se manter desestabilizado, e o acordo Arábia Saudita–Irã não pode prosperar.

E mais, desde o início da incursão russa em território ucraniano – uma demonstração de poder sem precedente em desafio ao sistema de regras imposto pelos anglo-saxões há mais de 200 anos – o hegemon se vê “obrigado” a fazer o mesmo, sob pena de se ver desmoralizado perante aliados, competidores e vassalos deste sistema interestatal por ele mesmo liderado.

Talvez tenhamos esquecido disso, pois foi há muito tempo atrás e nenhum de nós estávamos vivos naquela altura, mas o que está acontecendo na Palestina hoje não diz respeito apenas à finanças, armas ou energia; nem mesmo a uma mera questão religiosa.

Trata-se de um reflexo da metástase do estado de guerra hegemônica já em estágio de alastramento global: a disputa pelo poder global em seu estado bruto; onde as potências grandes e médias forjam alianças e enquadram seus eventuais vassalos em uma preparação permanente para a guerra do agora e do porvir.

Fabio Reis Vianna é mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus pela Universidade de Évora, Portugal; professor e analista político internacional.

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