Uma dinastia de 114 anos da leiloaria brasileira

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Não é segredo que os leilões são um grande negócio em todo o mundo e jornais importantes, como o Monitor Mercantil, dedicam espaços e até colunas nas quais apresentam a movimentação do que ocorre nos pregões da cidade, do Brasil e do Mundo.

Recentemente, as vendas de obras de arte somaram aproximadamente US$ 8 bilhões. E em maio deste ano, a Christie’s bateu o recorde de escultura mais cara já vendida em leilões, com a obra L’Homme au doigt, de Giacometti, arrematada por US$ 141.285.000, e, também, o de obra de arte mais cara, com a venda de Les Femmes d’Alger, de Picasso, por US$ 179.365.000.

A Christie’s, fundada em 1766 por James Christie, é uma das empresas de arte mais importantes do mundo e que conseguiu criar uma rápida reputação entre as casas leiloeiras britânicas, nos anos seguintes à Revolução Francesa. Desde 1823, a sede principal se encontra em King Street. Conta com filiais em Nova York, Paris, Genebra, Roma, Milão, Los Angeles, Amsterdã, Hong Kong, Singapura e Bangkok.

A Sotheby”s é também uma sociedade de vendas por leilão, também com sede em Londres, e sua primeira venda ocorreu em março de 1744. Essa renomada casa de leilões adquiriu, com o passar dos séculos, uma relevância mundial e é a referência indiscutível em leilões de obras de arte, joias e grandes tesouros do mundo. Entre as suas realizações, conta, dentre muitos sucessos, com a venda das joias da duquesa de Windsor, obras de arte como O Grito, de Munch, ou o patrimônio de Jacqueline Kennedy, viúva do Presidente John Kennedy.

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No Brasil, a casa de leiloes mais antiga é a Ernani Leiloeiros, que está comemorando 114 anos de fundação e se mantém com o mesmo vigor de seu fundador Ernani de Carvalho (1906-1927), que começou sua carreira como preposto de um dos primeiros leiloeiros do Rio de Janeiro, Joaquim Alfredo da Cunha e Laje, e que, após a sua morte, assumiu a direção dos negócios.

Atuou no tempo em que os leilões eram realizados dentro das mansões dos grandes colecionadores, dispersando ao correr do martelo tesouros de arte antiga, joias e pratarias, móveis de época e, não raras vezes, leiloava a própria residência onde se efetuavam as vendas.

Dentre os seus feitos históricos, destaca-se a venda de todos os loteamentos de Ipanema e Leblon, em virtude da falência da imobiliária responsável. Sua elegância no vestir ganhou notoriedade, bem como a firmeza e vivacidade com que conduzia os pregões. Durante os leilões, usava sempre dois brilhantes solitários: um na mão direita e outro no prendedor da gravata, detalhes que os chargistas da época fizeram questão de fixar em seus desenhos. Em 1913, ganhou o tradicional “Martelo de Ouro” que acompanha a família Ernani até hoje.

Na sucessão, Horácio Ernani de Mello, Ernani II (1927-1963), assumiu o comando do ramo. E após adquirir experiência como preposto do pai, montou seu escritório e sala de pregões na Rua São José, no Centro. A exemplo do pai, também realizou leilões nas residências de grandes colecionadores, dispersando preciosidades como as faianças das Caldas da Rainha, as raridades bibliográficas do Dr. Francisco Simões Correa, as coleções memoráveis de Henri Kerti, da marquesa Elisa Larenas Canela, de Cunha Vasco e da embaixatriz Rodrigues Alves.

Em diversas oportunidades, a própria História do Brasil passou pelo seu martelo, como quando leiloou os objetos históricos do Brasil Colônia e dos Primeiro e Segundo Reinados ou por ocasião do Leilão das Peças Imperiais do Museu Histórico Simoens da Silva, que continham relíquias que os mais importantes museus do país não conseguiram reunir em seus acervos.

Ao apregoar a coleção da viúva Zulmira de Mattos Velloso, leiloou o célebre quadro de Almeida Junior Último Modelo, que foi a causa da morte trágica do artista. O marido da modelo, investido de ciúmes, escolheu a vingança pelo assassinato.

Ernani II destacou-se, dentre os leiloeiros de sua época, pelo rigor e honestidade com que dirigia seus negócios e pela preocupação em fazer dos seus leilões um acontecimento simultaneamente social, cultural e comercial. A visão ampla que Ernani II possuía do fenômeno do leilão foi assumida de público no Catálogo da Coleção Armando Chermont, em 1949, quando escreveu: “Adquirir e colecionar obras de arte, além de construir uma satisfação intelectual e moral, de ser o cumprimento de uma função social, cultural e educativa, representa um ótimo investimento de capitais.”

Com a sua morte, assumiu Horácio Ernani Thompson Mello, Ernani III, (1963-1978) que, com invulgar talento e ousadia e capacidade empreendedora, levou a dinastia Ernani ao seu ponto máximo. O brilho carismático na condução dos pregões fez com que o mais notório colunista social da sua época, Ibrahim Sued, o batizasse com a alcunha de “Le Roi”.

A importância de seus leilões, a cultura pessoal e o espírito inovador o projetaram além de nossas fronteiras, transformando-o no único leiloeiro do Brasil a ser citado com frequência na revista Connaissance des Arts. E, como se não bastasse, demonstrou notável espírito público, dedicando a venda de seus catálogos em benefício de instituições, como a Casa do Pequeno Jornaleiro, a Fundação Romão Duarte de Mattos, a Casa dos Artistas, a Pequena Cruzada e a Pró Matre.

Em 1962, alugou uma enorme residência, a Vila Venturosa, na Ladeira da Glória, com objetivo de oferecer mais conforto aos seus clientes. Em setembro de 1967, o visionário Ernani III deixou a Vila Venturosa e transferiu-se para uma nova e mais ampla sede, na Praia do Flamengo, no Castelinho, na esquina da Rua Dois de Dezembro. Foi a primeira a receber o título de Palácio dos Leilões. Ali, Ernani III permaneceu até 1973, consolidando sua posição de leiloeiro dinâmico, admirado e respeitado, que não temia inovar para melhor servir à sua clientela.

Em novembro de 1973, mais um passo à frente. Inaugurou o novo Palácio dos Leilões na Rua Voluntários da Pátria, quase esquina da Rua Dona Mariana. Ernani III foi o grande inovador dos leilões. Deve-se a ele, também, o lançamento e a calorização no mercado de arte de pintores como Enrico Bianco, que começou a alcançar cotações elevadas ao som de seu martelo, e Sigaud, que confiou a ele seu primeiro óleo colocado à venda.

Em dezembro de 1977, Ernani III realizou seu último leilão, surpreendido pela necessidade de entregar o Palácio ao fim do contrato de aluguel, porém rigorosamente alegre, na expectativa de realizar seu sonho dourado, de instituir o Palácio dos Leilões em sede da sua propriedade particular.

Lamentavelmente, em abril de 1978, Ernani III faleceu sem poder concretizar seu projeto de aquisição da sede própria. Horácio Ernani de Mello Neto, Ernani IV (1978-2009), assume o lugar do pai. Na dinastia dos Ernani, foi o único a ser nomeado leiloeiro antes ter sido preposto de seu antecessor. Alçado à direção dos negócios com apenas 27 anos, tornou-se o leiloeiro mais jovem do Brasil, sendo ironicamente chamado de “menino” por alguns de seus colegas de profissão.

Estimulado pela descrença em sua juventude e mirando-se no exemplo de audácia do pai, Ernani IV lançou-se ao trabalho com entusiasmo, comprometimento, responsabilidade e disposto a afirmar seu próprio valor e nome e confirmar a importância de ser sucessor de um homem que modernizou os leilões no Brasil.

A primeira iniciativa de peso foi realizar o sonho do pai, o de adquirir uma mansão na Rua São Clemente, tornando-se, assim, o primeiro leiloeiro a ter casa própria no Rio de Janeiro. Ernani IV tornou-se pioneiro na implantação de um auditório específico para a realização de leilões, dotado de palco giratório para a exibição de peças durante o pregão e na instalação de salas e salões exclusivamente desenhados para a função de exibição prévia das peças a serem leiloadas.

Ernani IV morreu e deixou como sucessor seu filho, Horácio Ernani Rodrigues de Mello, Ernani V, que assumiu o comando da Dinastia Ernani. Na sua estreia oficial, no Palácio dos Leilões, passou por seu martelo a famosa Coleção Noronha Santos, com manuscritos de Olavo Bilac, Machado de Assis, Manuel Bandeira e até os originais de uma pauta musical assinada por Richard Wagner.

Inovando nas divulgações de seus leiloes por meio de um site, Ernani V foi o primeiro leiloeiro a utilizar essa ferramenta da internet. Em 2009, com o falecimento de seu pai, Ernani IV, recebeu de sua mãe, Carmem, o “Martelo de Ouro”, símbolo de toda essa história.

Essa história continua sendo escrita com as realizações de leilões mensais, e um especial, sendo comemorado neste mês, quando são festejados os 114 anos da fundação da Dinastia Ernani, no qual estão sendo apregoados lotes de importantes artistas nacionais e internacionais, joias dignas de serem comercializadas nos salões da Christie’s ou da Sotheby’s, além de coleções de pratarias, porcelanas, móveis, marfins e tapetes orientais de altíssima qualidade.

Uma casa de leilões conseguir sobreviver, no Brasil, com tantas crises sociais e econômicas, por mais de um século é motivo para grandes comemorações, além de toda uma história familiar, que já se encontra na quinta geração, dedicada às artes e, assim, produzindo e levando cultura, entretenimento, além de promover cursos de extensão de artes e de restauro para os amantes das artes plásticas e colecionadores.

Paulo Alonso

Jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

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