Uma visão comum de futuro para repelir a destruição do presente

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Cerimônia troca de bandeiras do Brasil (foto de Fábio Pozzebom, ABr)
Cerimônia troca de bandeiras do Brasil (foto de Fábio Pozzebom, ABr)

Como analisado nos artigos anteriores, vive-se um contexto de profunda disputa entre as potências na esfera do poder informacional, em que o Brasil, por seu contexto histórico, permanece mais como vítima do que protagonista. Enredado em disputas de narrativas, operações de influência, e, provavelmente, espionagem e sabotagem industrial, sair desta política de passividade é prioridade, se o país quiser voltar a crescer e ocupar a esfera econômica que suas dimensões necessitam no contexto global. Vale recordar que novos espaços ocupados significam, em sentido físico ou simbólico, o ato de desalojar o ocupante anterior, ou seja, algum nível de conflito é inevitável.

Como medidas para mudar o panorama de atual foram elencadas nos textos anteriores três questões centrais: a) desenvolvimento de medidas defensivas e ofensivas no campo das operações cibernéticas, com a criação de uma agência de inteligência de sinais; b) concatenação com uma política de desenvolvimento de clusters produtivos e indústrias de defesa; c) definição de objetivos nacionais de longo prazo, que é o tema do presente artigo.

Adentrando então o tema deste texto, será analisada a necessidade do planejamento estratégico brasileiro, os cuidados a serem tomados para que seja bem sucedido, e por que o contexto atual transformou sua produção em uma questão de segurança nacional. Mais do que uma aparente excentricidade, objetivos comuns a serem alcançados através de um longo período temporal estão se tornando uma pedra angular na sobrevivência de qualquer sociedade nestas primeiras décadas deste século.

Neste sentido, tanto quanto empresas, as nações reiteradamente constroem projetos de longo prazo, como demonstra o exemplo da China. Recentemente esta potência aprovou (2020) o seu 14º Plano Quinquenal, delimitando o roteiro do país com vistas ao quinquênio de 2021 a 2025, mas que se articula como um ponto de passagem dentro de uma perspectiva mais ampla, da China em 2050.

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Igualmente articulado a este calendário de longo prazo está o conhecido Plano ”Made in China 2025”, publicado em 2015. Para além da modernização da nação, o plano prevê como metas especiais para 2050 uma grande evolução científica, tecnológica e militar. Funcionando como um entreposto de médio prazo, estão as metas de ‘modernização socialista” para 2035, antecipando mudanças produtivas, socioculturais e na organização do Estado.

O planejamento de longo prazo, todavia, não é uma prerrogativa dos Estados de economia planificada, como demonstra o documento Grã-Bretanha global em uma era competitiva: uma revisão integrada de segurança, defesa, desenvolvimento e política externa. Nele, os britânicos tentam estabelecer um olhar comum do seu próprio papel no mundo em 2030. Interessante observar que a visão concatena a prioridade na evolução tecnológica e o seu caráter determinante para a economia e para a defesa nacional.

Com o enfoque centralmente econômico, vez que em termos militares é um protetorado norte-americano, a Alemanha divulgou em 2019 sua Estratégia industrial para 2030, com o objetivo de traçar um roteiro para a preservação de empregos e combater a desindustrialização dentro do país. Mais do que conquistar novos espaços, o objetivo alemão envolve manter o poder alcançado por sua economia.

Como se pode inferir dos exemplos acima, os governos planejam o longo prazo principalmente pelo fato de que processos, políticas e tecnologias revolucionárias ou rupturais exigem tempo para maturar. A criação da internet a partir das necessidades do Departamento de Defesa dos EUA, por exemplo, foi um processo de quase três décadas de aporte de recursos, fomento científico, e da criação e proteção do cluster produtivo do Vale do Silício.

O atual projeto chinês da “rota da seda digital”, promovendo a implantação de infraestrutura tecnológica global, é outra ocorrência cujos resultados serão plenamente visíveis somente no longo prazo. No tocante a tecnologias como inteligência artificial, computação quântica ou exploração espacial os horizontes temporais, são igualmente longos.

O projeto do submarino nuclear, gerido pela Marinha, e previsto para 2033, é um exemplo nacional de projeto de longo prazo. Ao se considerar que o conjunto do programa nuclear brasileiro remonta aos anos 70 do século passado, tem-se um acúmulo de mais de cinco décadas de desenvolvimento e pesquisa neste campo como lastro para o reator do submarino. Caso inexistam mais contingências orçamentárias, quando for entregue terão se passado cerca de 60 anos deste o início do programa nuclear. Sem um horizonte estratégico para guiar o enfrentamento com as variáveis que inevitavelmente surgiram no decorrer de todo este período, dificilmente se teria um submarino em construção atualmente.

Por outro lado, somente metas temporais não explicam o sucesso do planejamento estratégico. Diversas políticas de Estado que pareciam ter um futuro perene desapareceram em questão de anos, com as alternâncias de poder. Para além dos projetos de longo prazo de prefeituras e governos estaduais, até mesmo metas grandiosas como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), patrocinada pelo Governo Fernando Henrique,  ou a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), do Governo Lula, são exemplos deste fenômeno. Foram criadas com perspectiva de longa duração, mas não resistiram as trocas de guarda características das sociedades democráticas.

O fenômeno da descontinuidade é justamente um dos principais desafios envolvendo a elaboração de objetivos estratégicos no país. Essa limitação é consequência de um conjunto de fatores, como o engessamento dos planos para lidarem com a velocidade das mudanças, a ausência nacional do hábito de planejar o longo prazo e realmente empregar o que foi planejado, e, principalmente, é a expressão de quando o planejamento estratégico apresenta em seu bojo a herança do pensamento autoritário, característico de sociedades com forte herança de cultura caudilhesca.

Ao considerar este último aspecto, cabe ponderar que em uma democracia, ao se pensar políticas de amplo horizonte temporal, se deve buscar algum nível de consenso para com os diversos atores políticos. Essa concertação política, mais do que a valoração de um rito de pluralidade de pensamento, representa, sobretudo um exercício de pragmatismo. Como a Alca e a Unasul demonstraram, o que não for maturado coletivamente, não sendo consenso, quase certamente será descontinuado quando das sucessivas alternâncias de poder.

Claro que existem políticas de governo, que são a expressão e justificativa da eleição de dada posição política para ocupar o Estado em determinada conjuntura. São medidas que expressam um mandato temporal e o seu programa de realizações. As políticas de Estado, por outro lado, tendem a ser estratégicas, exigindo décadas de desenvolvimento e manutenção, sendo exequíveis somente com ampla anuência dos principais atores sociais. De fato, exigem o autocontrole do exercício do poder. Muitas vezes, o governante que mais impulsionou um projeto não será quem o inaugurará.

Para agudizar as contradições desta ausência nacional de metas estratégicas comuns, e da habilidade de estabelecê-las de maneira sustentável, entram em cena as operações de informação, ações de influência e guerras hibridas, debatidas nos artigos anteriores. Este novo contexto provoca uma mudança qualitativa na relevância quanto a construção da concordância social de políticas de horizonte temporal longo.

Mais do que o sucesso econômico ou a capacidade de projetar e materializar inovações tecnológicas, uma visão comum de longo prazo agrega uma ampla camada de resiliência, necessária ao enfrentamento das sucessivas tentativas de divisão social que tendem a serem sofridas pelos Estados modernos.

Conforme já analisado nos artigos anteriores, o impasse da guerra nuclear levou o conflito entre as potências para a prospecção de terrenos assimétricos, ou seja, para as esferas em que se causa dano ao adversário por este ser mais fraco, sem provocar uma guerra aberta. Um dos instrumentos principais são as operações de informação, em que setores sociais de outras nações se tornam alvo de manipulações mediante a potencialização de temores e inseguranças coletivas. As redes digitais trouxeram os conflitos globais para o território local, mascarados sob temas e preocupações quase irreais.

Na verdade, uma parcela significativa do ódio ao imigrante, ao homossexual, à arma de fogo, ao comunismo, ao militar ou ao muçulmano são potencializações de temores e incertezas muito mais profundas. O mundo globalizado pelo neoliberalismo, cujos empregos diminuem, profissões desaparecem e caminhos seguros deixam de existir, é um lugar inseguro, desesperançoso e que provoca muita ansiedade nos mais distintos seguimentos. Como medo e raiva são sentimentos interligados, é relativamente fácil para especialistas transformarem as consequências em motivos. Quanto mais complexo o fenômeno, mais fácil o emprego de simplificações que desinformam, e que ao fazê-lo, antagonizam e dividem.

Logo, para além de meios de defesa cibernética que identifiquem a ação dos adversários, e relativa independência tecnológica nacional que permita evitar que as redes sociais sejam instrumento de constante subversão, o melhor instrumento de preservação social é a construção de resiliência. Ou seja, a capacidade da sociedade brasileira de preservar sua tessitura social, mesmo sofrendo constantes ataques de desinformação. E para isso, um instrumento basilar é uma visão de futuro onde os indivíduos se localizem. Ao se contemplarem, poderão compreender que existe um espaço futuro reservado para seus anseios e esperanças, aprendendo a aceitar que neste mesmo porvir exista igualmente um lugar reservado para os brasileiros com perspectivas distintas da sua.

Como antes observado, embora a conclusão lógica de que o país necessita de uma visão estratégica possa a essa altura do texto parecer óbvia, sua construção representa ainda um enorme desafio. Exige o entendimento prévio por parte dos governantes e partidos da vez, que não são perenes, e que em algum momento deixarão o poder e outra posição política assumirá. Desta maneira, se quiserem construir políticas públicas de longo prazo precisarão encontrar convergências entre os opostos, e perceber como legítimas ao menos parte das aspirações sociais de outros setores, que não os de suas bases eleitorais. Quando não se tem opção, muitas posições imperativas tendem a serem mediadas.

Se a sociedade brasileira almeja concretizar um futuro próspero, ele deverá ser comum.

Vladimir de Paula Brito é doutor em Ciência da Informação.

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