Vale revogar a chamada LRF para garantir o overnight aos bancos?

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Banco Central (Foto: ABr/arquivo)
Banco Central (Foto: ABr/arquivo)

Em vez de interromper a nociva operação de remuneração da sobra de caixa dos bancos que vem sendo realizada pelo Banco Central há anos, por meio do abuso na utilização das Operações Compromissadas, com imenso prejuízo aos cofres públicos e à economia do país, a Lei 14.185/2021 transforma essa remuneração em uma despesa obrigatória e, ainda por cima, sem limite ou parâmetro algum e sem sequer dizer quanto vai custar.

Essa operação não é qualquer operação. Ela é a principal operação responsável pelo travamento da economia brasileira: os juros de mercado são abusivos no Brasil por causa dessa remuneração diária aos bancos. E juros exorbitantes amarram a economia: fica tudo travado!

É evidente que os bancos preferem receber o rendimento diário pago pelo Banco Central, do que emprestar para a sociedade a juro baixo. Dessa forma, todo o dinheiro depositado ou aplicado nos bancos, e que pertence à própria sociedade, deixa de retornar a ela por meio de empréstimos a juros baixos e passa a ficar esterilizado no Banco Central, rendendo juros somente aos bancos, às nossas custas. Enquanto isso, os bancos só se dispõem a emprestar às empresas e pessoas a taxas de juros exorbitantes, como as praticadas em nosso país, impedindo a circulação do dinheiro na economia, a geração de emprego e renda.

A Lei 14.185/2021 afronta diversos dispositivos constitucionais e revoga, sorrateiramente, o art. 34 da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, tendo em vista que para operacionalizar a esdrúxula figura do Depósito Voluntário Remunerado que ela cria, o Banco Central voltará a emitir títulos públicos para remunerar os bancos, conforme explicitado no artigo “Depósitos voluntários e dívida pública: PL resgata a competência do BC para emitir títulos próprios, proibida pela LRF”. Órgãos de controle ficarão calados diante desse escândalo?

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Os títulos públicos que o Banco Central irá emitir, ao arrepio do disposto no art. 34 da LRF, é que estabelecerão “a remuneração, os limites, os prazos, as formas de negociação e outras condições” dos Depósitos Voluntários Remunerados que a Lei ordinária 14.185/2021 cria. Essa medida atende aos anseios do mercado, pois torna a transferência de centenas de bilhões aos bancos ainda mais obscura. Está relacionada também com a atuação autônoma do Banco Central em relação aos demais poderes, pois ele emitirá seus próprios títulos públicos, passando por cima da LRF, para remunerar sem limite os bancos.

Essa revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal não constou de forma explícita no resumido texto do PL 3.877/2020, tendo sido omitida também em sua justificação. Referido projeto foi votado diretamente em plenário, tanto no Senado como na Câmara, sem passar pelas comissões de Constituição e Justiça ou de Assuntos Econômicos ou Finanças e por nenhuma das comissões temáticas; sem audiências públicas ou qualquer debate público.

O elevadíssimo custo dessa operação recai sobre a sociedade, pois os recursos para o pagamento da remuneração da sobra de caixa dos bancos saem do Tesouro Nacional, conforme detalhado em artigo no site da Auditoria Cidadã. E mais: os prejuízos do Banco Central também são repassados ao Tesouro Nacional, de acordo com o disposto no Art. 7º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar 101/2000).

O governo alega que faltam recursos para aumentar o valor do pífio auxílio emergencial que vem sendo pago aos mais necessitados, apesar de mais da metade da população brasileira se encontrar em estado de insegurança alimentar, passando fome. Nesse contexto, qual a justificativa para pagar juros diários aos bancos sobre um dinheiro que sequer pertence a eles?

As Operações Compromissadas correspondem ao overnight imoral que chegou a ser noticiado quando alcançou R$ 1,6 trilhão em agosto/2020 e representaram um custo de quase R$ 3 trilhões em 10 anos aos cofres públicos, conforme dados oficiais tabulados pela Auditoria Cidadã, sendo que em todo esse período essa remuneração aos bancos se encontrava limitada à taxa básica de juros Selic.

Durante a tramitação do PL 3.877/2020, senadores rejeitaram emenda que pretendia limitar os juros do Depósito Voluntário Remunerado à Selic, o que significa que o céu será o limite para os juros que o Banco Central pagará diariamente aos bancos! Ainda mais agora, com o Banco Central independente, a decisão acerca da remuneração fugirá completamente ao controle público, que somente será chamado a pagar a conta.

A Lei 14.185/2021 coloca o Brasil na contramão do mundo, pois gera escassez de moeda na economia, produz e aprofunda a crise, além de elevar os juros para patamares estratosféricos. Outros países fazem o contrário: os EUA estão injetando recursos nos bancos para aumentar a oferta de dinheiro na economia, e na Europa o BCE está punindo os bancos que depositarem o seu excedente nos bancos centrais e provocarem escassez de moeda na economia.

A justificação do PL 3.877/2020 (senador Rogério Carvalho PT-SE) está repleta de erros. A alegada redução da dívida pública é uma ilusão, pois os títulos que passarão a ser emitidos pelo BC constituem dívida pública. Errou feio também ao dizer que em 2020 a elevação das operações compromissadas teria se dado “em razão da necessidade de enxugar a liquidez criada pela utilização dos recursos da Conta Única para enfrentamento da pandemia”, ignorando que o Banco Central injetou R$ 1,2 trilhão de liquidez nos bancos, como amplamente noticiado.

Apesar dessas mentiras, inúmeras inconstitucionalidades e até revogação da LRF, o projeto virou lei, pois vale tudo para garantir o overnight aos bancos.

 

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.

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