Vende-se o rio São Francisco

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O rio São Francisco, dito “da integração nacional”, foi posto à venda pelo governo federal, atendendo aos ditames do sistema financeiro internacional. Será uma venda disfarçada, numa transação em que o bem que aparece como objeto de alienação é o controle acionário da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco). Mas, como alertam há anos pessoas de todas as latitudes técnicas e políticas, a Chesf não existe sem o São Francisco. Portanto não se pode vender a empresa sem dar, como peso morto, o “grande rio”.
Em maio de 1995, o presidente foi alertado sobre essa situação pelo Governo de Pernambuco. A nós parecia despropositado transferir para a iniciativa privada um sistema hidrelétrico tão complexo, considerando principalmente que sua essência é a água cada vez mais escassa do rio, ameaçado de extinção nos próximos 50 anos, segundo estudos do próprio governo. A água do São Francisco não é usada apenas para gerar energia; há muitos outros usos, inclusive potenciais, que vão da navegação à irrigação, passando pela pesca e pela exploração turística.
Nada mudou na posição do governo. Salvo pequenos recuos táticos, forçados por uma pressão política impulsionada pela opinião pública (infelizmente, ainda mal informada), o processo segue seu curso. Um dos recuos, ainda em 95, foi a assinatura, pelo próprio presidente, de um protocolo pelo qual o governo se comprometia a “definir um modelo institucional para a gestão integrada do rio” e a elaborar, com Estados e municípios, um plano diretor. Nada disso foi esboçado. Outro recuo aconteceu neste ano, quando um acordo parlamentar determinou o adiamento do esquartejamento da Chesf em quatro empresas, para fins de privatização. Mas não nos iludamos. Logo novas iniciativas serão tomadas.
A Chesf é muito importante. Em 500 anos de Brasil, pode-se dizer que só três grandes investimentos foram feitos no Nordeste. O primeiro, ainda no Império, foi a implantação da malha ferroviária, não concluída. O segundo, do pós-guerra ao regime militar, foi a construção da malha rodoviária. O terceiro, nesse período, foi a construção do complexo administrado pela Chesf. Em valores históricos, o sistema custou US$ 8,4 bilhões. Tudo o que se move no Nordeste é impulsionado pela Chesf, que gera 95% da energia consumida.
Mas, se a Chesf é importante, o São Francisco é muito mais. A empresa vive um momento singular. Em dois anos, a curva da demanda e a da oferta se cruzarão, produzindo um déficit de energia no Nordeste inédito em 30 anos. Só pesados investimentos em geração não-hidrelétrica resolverão o problema. E, se a Chesf precisa de investimentos, que dizer do São Francisco, explorado predatoriamente há séculos, assoreado por desmatamentos criminosos e envenenado por agrotóxicos?  Nas últimas décadas, a água do rio vem sendo objeto de feroz disputa política. Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas projetam irrigar 3 milhões de hectares de terra nos próximos anos. Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, que não estão nas margens do rio, mobilizam suas bancadas em defesa de projetos de transposição de águas. Todos acalentam com entusiasmo a idéia de consolidar a hidrovia do São Francisco.
De que modo essas necessidades podem ser compatibilizadas com a atuação privada, que visa o lucro? E, afinal, por que privatizar? Alega-se que operadoras privadas concorrerão entre si e oferecerão energia melhor e mais barata. Como, se a água que move as turbinas é escassa e disputada, sujeita a racionamentos periódicos, o que significa faturamento menor para as operadoras? O próprio governo federal projeta grandes investimentos em irrigação. Como as futuras donas do rio serão ressarcidas pela água “desviada”? Outras questões inquietam os estudiosos, como o engenheiro João Paulo Maranhão de Aguiar. Ele pergunta: por que privatizar o sistema se ele foi construído em 50 anos de investimentos maciços do povo brasileiro, gera energia boa e barata, comparada ao custo internacional, e dá lucro? Por que países como EUA e Canadá mantêm estatizados seus sistemas hidrelétricos, havendo até casos de reversão de operadoras privadas para o setor público? Entre nós, o exemplo paradigmático é a privatização da malha ferroviária. Vendida em 1996 a um grande grupo empresarial, que integra a nova plutocracia favorecida com os negócios especiais da privatização (seja do BNDES, seja dos Estados), a rede ferroviária não recebeu até hoje um único centavo de investimento privado. Tem-se, ao contrário, notícia de iniciativas dos controladores da empresa para obter recursos públicos, seja do Fundo de Investimento do Nordeste, seja de incentivos fiscais dos estados. Quem supõe que, privatizada a Chesf, seus futuros proprietários agirão de outro modo? Vender a Chesf agora pode significar devolver os destinos do Nordeste aos interesses que sufocaram a experiência pioneira do empresário nordestino Delmiro Gouveia, no início do século. É impor novo bloqueio econômico à região. É contra isso que temos de lutar.

Miguel Arraes de Alencar
Advogado, é presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro. Foi governador de Pernambuco (63-64, 87-90 e 95-98), prefeito de Recife (60-62) e deputado federal pelo PSB-PE (91-94). Artigo fornecido pela Agência Folha.

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