Descrever os fatos tais como eles se apresentam, apenas na base da constatação de sua objetividade, é relativamente simples, se nos atemos a reportá-los dentro dos limites de seu campo de representação. É como pegar uma foto e descrever suas cores, contrastes e possíveis traços objetivos. Contextualizar essa representação já requer um trabalho de pesquisa mais aprofundado, de circunscrever esses traços no tempo e no espaço, ampliando a sua rede de significados. Fazer interpretações, emitir opiniões e prognósticos é algo bem mais complexo e requer o cruzamento de fronteiras do conhecimento.
Me pego, portanto, diante do desafio de falar sobre vinhos sem álcool, uma novidade que, como tudo na atualidade, evolui mais rápido no mercado do que a capacidade de compreendê-la. Para quem estuda e trabalha no campo do vinho, é grande o desafio de conhecer a diversidade de estilos que existem e suas possibilidades de apreciação. Entender as conexões que se estabelecem entre o que se bebe, suas uvas, territórios e métodos de elaboração exige muitas horas de estudo e um vasto repertório de degustação. Mas, quando temos a oportunidade de apreciar uma parte desse universo enológico tão vasto e, quase, inatingível, nos parece improvável ter que lidar com a imagem de uma propaganda de vinhos sem álcool.
Certamente, temos que nos apropriar de todos os filtros possíveis contra juízos de valor, julgamentos apressados ou preconcepções que certamente virão. Há um longo caminho já trilhado pela indústria do vinho, que enfrenta até hoje suas vulnerabilidades climáticas, produtivas e econômicas geracionais. Este me parece ser mais um episódio de seus desdobramentos, que pode permanecer dentro de uma gavetinha ou assumir maiores proporções.
Assim, fiquei observando algumas propagandas de vinhos sem álcool, fazendo o exercício de contextualizá-las no tempo e no espaço. Tomei como exemplo as propagandas das linhas Belight, do Casillero del Diablo, da Vinícola Concha y Toro. As imagens remetem à leveza, a vinhos brancos e rosés – algumas vezes servidos em taças manuseadas por mãos femininas – e a um texto que remete ao baixo teor alcoólico e à baixa caloria. A composição é clara em seu apelo à conformação de uma demanda de consumo sem muitas implicações intoxicantes e calóricas.
A assinatura vem de um dos maiores produtores de vinhos do mundo, que tem o vinho como um grande negócio. O vinho desta propaganda específica não é completamente isento de álcool – trata-se de um vinho de baixo teor alcoólico –, mas outros já estão sendo comercializados praticamente sem álcool.
Recordo-me de ter dialogado, em 2012, com pesquisadores da estação Pech Rouge, do INRAE, em Narbonne, França, que estudavam a viabilidade do vinho sem álcool e que, certamente, contribuíram para dar origem aos procedimentos de desalcoolização do vinho. Experimentavam métodos que não comprometessessem a qualidade do vinho e, naquele momento, constatavam que, abaixo de certa graduação alcoólica, o produto não mais parecia vinho. Foram feitos experimentos com consumidores que desconheciam esse objetivo, incluindo vinhos com diferentes graduações alcoólicas, a fim de registrar suas avaliações sensoriais.
Qual era a justificativa da pesquisa? A percepção da tendência de uma visão negativa da sociedade em relação ao álcool, que gerava uma demanda por bebidas não alcoólicas, como já acontecia com as cervejas. Outro motivo era o impacto do aquecimento global na geração de vinhos cada vez mais encorpados, e essas pesquisas poderiam criar um caminho mais sólido para a diminuição dos níveis alcoólicos dos vinhos.
Paralelamente a isso, já há algumas décadas, o negócio do vinho tem vivenciado uma queda persistente nos níveis de consumo mundial. Num primeiro momento, a estratégia era agregar valor ao vinho, nivelando sua qualidade a um padrão mais alto, de forma que o produto passou a ser vendido em menor quantidade, mas a um preço maior. Depois, veio a busca por produtos mais saudáveis, orgânicos, biodinâmicos, naturais, veganos etc. Agora, o novo nicho parece ser o “no-low”, expressão anglo-saxônica para a nova tendência.
E isso já está levando a novas regulamentações do mercado, inclusive no tão precioso campo das AOC’s francesas, embora haja polêmica e questionamentos, inclusive relativos à durabilidade desses produtos. O principal público interessado parece vir das novas gerações, mas também de pessoas que, por fatores religiosos ou de saúde, evitam o álcool. Justíssimo que todos possam beber sem que isso os afete, física e moralmente.
Mas será que o Vinho Zero continua sendo vinho? Será que ele vai virar uma espécie de leite sem lactose, de pão sem glúten? Há muito a compreender. Seguimos com a reflexão com dados mais técnicos.